Kênia Dias

Kênia Dias
12 de abril de 2019 alayadanca

Experiências em criação: o ponto de partida

A ideia central deste texto é fazer uma reflexão acerca do processo de construção de um imaginário de cena que tenha como principal ponto de partida o corpo do ator-dançarino. Um corpo a ser revelado expressivamente quando se investigam as próprias potencialidades de movimento e de ação. Para isso, são duas as referências do atual estudo: a primeira é uma análise descritiva de um processo de criação que está em pleno vapor de sua feitura. É o espetáculo de nome Havia, que está em fase de montagem e finalização dirigido por mim e por Ricardo Garcia com alunos do curso profissionalizante de teatro do Palácio das Artes-BH/MG.

A segunda é uma análise da performance Lambe-Lambe realizada em 2005 como resultado prático de minha pesquisa de mestrado: Da Rua à Cena: Trilhas de um Processo Criativo, concluída na Universidade de Brasília (UNB).

Após a análise desses dois processos de criação, farei a conexão de alguns aspectos relevantes relacionados à pesquisa de movimento com o método Teatro do Movimento, fundamentado por Lenora Lobo, com a qual trabalhei por 10 anos decisivos para minha formação como artista, professora e diretora.

Havia: um processo em andamento

Na montagem do espetáculo Havia, o processo teve como estímulo algumas imagens do pintor Renné Magritte, algumas perguntas e, em seguida, sugerimos pequenos contos da autora portuguesa Joana Bértholo a serem lidos e misturados nos estímulos imagéticos e verbais. Cada aluno deveria apresentar uma ideia prática de cena a partir de tais estímulos. Uma ideia em que ficasse evidente qual ou quais propostas corporais estavam em jogo.

À princípio, refiro-me às propostas corporais como sendo aquelas em que a Dinâmica do movimento e o estudo dos elementos do Corpo (Laban) são explorados, escolhidos e formatados para o exercício de cena. Como diretora, sempre pergunto: Qual a sua proposta corporal? Qual o desenho ou recorte de movimento em evidência? Onde estão os olhos do espectador? Na primeira demonstração de cenas o que havia eram ideias cuja materialização no corpo estava longe de acontecer.

O primeiro passo foi, portanto, explorar com mais intensidade as possibilidades de propostas corporais. Entender no corpo em movimento a sua Dinâmica com sua qualidade do tônus muscular (peso), das variações de velocidade (tempo), de espaço e de fluxo. Em relação ao Corpo compreender as sutilezas e detalhes do movimento simétrico/assimétrico; físico/espacial; central/periférico; isolado/corpo inteiro.

Para cada item pesquisado, algumas observações tornaram-se relevantes: primeiro, a percepção da própria tendência de movimento, e segundo, ter clareza de que a pesquisa de movimento se modifica de acordo com a variação de combinações dos itens acima descritos. Se investigo ações com peso firme, tempo lento, fluxo controlado, espaço flexível, simetricamente com movimentos que partam do centro do corpo, encontro linhas e estratégias de composição no espaço completamente diferentes se optasse por outros itens a serem estudados como, por exemplo, peso leve, tempo rápido, fluxo livre, assimetricamente com movimentos periféricos.

A partir do momento em que os alunos-atores tiveram clareza das possibilidades expressivas do movimento, começaram a encontrar mais objetividade em seus processos de criação. Após a exploração individual de cada elemento da Dinâmica e do Corpo, partimos para edição do material improvisado em pequenas sequências de movimentos.

Cada sequência é explorada de diversas formas: se o formato inicial é no nível espacial alto, vamos, então, explorá-la no nível espacial baixo. Se ela é rápida, vamos explorá-la no tempo lento. Se ela tem muito deslocamento pelo espaço, vamos estudá-la em um ponto fixo do espaço. Se ela tem trinta segundos, vamos fazê-la em quinze, dez, cinco e um segundo. E finalmente: como abreviá-la para um segundo?

Fizemos também deslocamentos de focos no corpo: como tal sequência de movimento pode ser feita apenas pelos olhos ou pelo tronco ou ainda pelos pés? Como pode ser feita em uma situação cotidiana como, por exemplo, sentado em uma mesa tomando café? Essas variações ampliam as possibilidades de jogo e de qualidades de expressão de modo a proporcionar um aprofundamento e um entendimento do material pesquisado que, gradativamente, sai da esfera do exercício para a esfera da cena.

Exploramos também a projeção máxima do movimento no espaço e a introjeção até ficarem visíveis somente os impulsos das ações. E a voz? Como trabalhá-la?

Uma das possibilidades foi estudar frases curtas que acompanham as diversas gradações do tônus muscular e, ainda, propositadamente, estudar a incoerência entre voz e corpo em movimento. Por exemplo, o movimento rápido com a palavra dita de uma forma lenta e vice-versa, ou o corpo com tônus muscular firme e a ação vocal realizada de forma leve. Com essas investigações os alunos começaram a encontrar, a partir da objetividade do corpo, estados emocionais e afetivos diferenciados e que poderiam ser repetidos a cada dia já que a repetição não estava focada em repetir esse ou aquele sentimento, mas nessa, ou naquela ação física na memória ou registro muscular.

Concomitante à objetividade de tais propostas, desenvolvemos pesquisas de movimento relacionadas à oposição de partes do corpo como, por exemplo, bacia e tronco; mãos e pés; olhos e boca; pescoço e ombros; bacia e pernas, sem perder de vista as possibilidades de esses focos afetarem outras partes do corpo.

Tínhamos, então, pequenas sequências de movimentos para cada item estudado. Cada ator juntou todo o material que tinha e organizou uma única sequência com uma média de vinte e seis a trinta movimentos. Essa grande sequência se tornou a base do aquecimento individual que era sempre revisitado e retrabalhado a cada dia. E vários desses movimentos, gestos e ações começaram a fazer parte da estruturação do vocabulário corporal da própria cena.

Essa tríade composta pelo estudo da Dinâmica, do Corpo e das Oposições, como já dito, abriu o horizonte de percepção, entendimento e concretização dos movimentos dos atores que, por sua vez, verticalizaram suas pesquisas em uma possível dramaturgia corporal para as primeiras e conseguintes cenas em estudo. Abaixo, segue uma elucidação dessas etapas de investigação:

  1. Dinâmica: peso, tempo, espaço, fluência
  2. Corpo: simétrico/assimétrico, físico/espacial, central/periférico, isolado/corpo inteiro.
  3. Oposição: tronco/bacia, cabeça/ombros, pernas/bacia, mãos/braços, olhos/boca, pés/pernas, braços/tronco.
  4. Exploração das pequenas sequências: no espaço, na velocidade, na ação vocal, em situações cotidianas, na inclusão de objetos.

A partir dessa pesquisa de movimento relacionando-a ao texto, objetos, imagens e recorte espacial, o processo criativo do espetáculo se configurou da seguinte forma:

  • Experimento 1: Cenas-rascunhos individuais feitas a partir de imagens de Magritte; perguntas e proposições de espaço, adereços e objetos.
  • Experimento 2: Cenas individuais a partir de determinados contos da autora Joana Bértholo e de propostas corporais claras e objetivas.
  • Experimento 3: Cenas individuais com interrupções de outros atores na dinâmica da cena.
  • Experimento 4: Cenas de grupo trabalhadas coletivamente a partir de propostas corporais, dos contos, objetos, imagens.

O processo de investigação dessas quatro fases de criação foi baseado no estudo das etapas Dinâmica, Corpo e Oposição que, por sua vez, fez desdobrar alguns exercícios, tais como: superfície/apoio, impedimento da ação, encaixes/desencaixes, roda-texto, aceleração/desaceleração da ação corporal em relação com a ação vocal.

Ao final de dois meses trabalho, tínhamos 23 cenas a serem organizadas no roteiro final da peça que está em fase de elaboração e amadurecimento. Por serem cenas com contextos e histórias diversos a pergunta é: o que traz unidade ao trabalho, já que, os conceitos lineares de personagem e história não são o que move a dramaturgia da cena.

Além da importância e da relação de outros elementos que constituem a cena, tais como, sonorização, objetos, adereços e palavras, temos um vocabulário de ações, gestos e movimentos que costuram, alinhavam ou ligam todo espetáculo.

O detalhamento na prática da pesquisa das propostas corporais feitas no processo de montagem conduziu à elaboração de uma escritura pelo movimento. Em cena, são corpos que têm suas particularidades, mas que, ao mesmo tempo, compartilham de uma linha em comum de pesquisa que possibilita a organização de determinados códigos que se repetem ou são apropriados de formas diversas pelos atores.

As oposições e variações de dinâmicas são evidentes nos desenhos de movimento gerando, então, uma linha em comum, porém individualizada de corporeidades em cena.

A orientação das etapas acima descritas relacionada ao processo de investigação de movimento e de corporeidades diversas não se iniciou nesse processo de criação em específico, mas em 2006, quando dirigi o espetáculo de formatura de alunos do curso de Artes Cênicas da UnB intitulado Páginas Amarelas. Nesse espetáculo, lidávamos sistematicamente com a desconstrução de gestos e posturas habituais do cotidiano, apontando o lugar do grotesco cênico como referência do trabalho expressivo.

Comecei, então, a aprofundar as possibilidades de estudo dessa tríade em cursos e oficinas ministrados em festivais de teatro e de dança e em instituições nas quais trabalho regularmente (Galpão Cine Horto/BH, Companhia de Dança do Palácio das Artes/BH, Festival de Inverno de Ouro Preto, Festival de Teatro no Rio de Janeiro, Festival Luso Brasileiro de Teatro em Teresina-PI, Pós Graduação em Direção na Faculdade de Artes Dulcina de Moraes/BsB, Festival de Teatro Popular Santiago-Chile).

Lambe-Lambe

Lambe-Lambe é o resultado prático da pesquisa de mestrado da Rua à Cena: Trilhas de um Processo Criativo concluída na UnB em 2005. Tal pesquisa teve como referência laboratorial a observação dos modos de vida de moradores e pedintes de rua. Alguns aspectos de suas realidades foram analisados e posteriormente experimentados em meu corpo, tais como: as fronteiras entre o público e o privado; limites de identidade; o corpo como único território a ser marcado e explorado; comunicação não verbal e transitoriedade. A partir desses aspectos, optou-se por explorar uma dramaturgia na qual o imaginário de cena fosse construído e desconstruído em mim que figuro e desfiguro no desenrolar da performance.

A performance não segue padrões formais de cenários, sonoplastia, figurinos e iluminação: a iluminação é a do ambiente, o cenário é composto por objetos que ocupam o cotidiano dos espaços e a sonoplastia são os ruídos e barulhos. Ou seja, a cena é crua e o acaso torna-se um elemento importante e significativo do trabalho, sendo possível concretizá-lo tanto em palcos, quanto em salas, corredores etc.

O nome Lambe-Lambe é uma referência às cabines de fotografias que ficam nas ruas para se tirar fotos para documentos. No contexto da performance, tal referência releva e questiona o valor da identidade e daquilo que, segundo Hannah Arendt, constitui a realidade: o que é visto e ouvido por todos, em que a aparência prima pela necessidade e urgência de reconhecimento.

A pesquisa de campo foi realizada concomitante à pesquisa teórica sobre o fenômeno da exclusão urbana e suas conseqüências na realidade de quem a vive. A urgência em colocar-me não apenas diante de, mas inserida na rotina dos moradores de rua e pedintes foi extremamente necessária. Isso levou-me a um amplo campo observacional e pude conhecer com uma certa intimidade vidas repletas de sonhos e histórias. E, com isso as pessoas que fazem parte desse cotidiano caracterizado por tênues limites de ganhos e perdas, de dentro e fora, de olhar e ser olhado.

Durante a pesquisa organizei, tanto o registro de várias situações relâmpago de mendicância, com uma grande variedade de pessoas e de situações, quanto o registro focado e específico no cotidiano de determinadas pessoas. No segundo caso, foi preciso passar por um processo de seleção: em quais pedintes eu me deteria. A escolha não depende apenas de um critério seletivo, mas principalmente, das características rotineiras do próprio pedinte: lugares, horários e constância diária em determinados locais.

Assim, foram feitos registros de imagens de quarenta e três pessoas, entre as quais, moradores de rua e pedintes de passarelas e semáforos, cuja faixa etária variava dos vinte aos setenta anos. Dessas pessoas, concentrei-me em cinco casos pela riqueza de material físico e humano apresentado e pela possibilidade de aprofundamento nas análises devido à constância cotidiana no ato de pedir. São elas: Mariza; Hélio; Sra. do Cartaz; Dona Evanides e seu companheiro e Sr. Raimundo. De cada um deles foi feita uma análise dos pontos de apoio e compensação de seus corpos e da dinâmica do movimento (Laban) cotidiano.

De acordo com as análises específicas dos pesquisados , percebeu-se, pois, que existiam:

  • Corpos com padrões físicos (pontos de apoio) semelhantes;
  • Dinâmicas de movimento semelhantes;
  • Ações básicas como gesto e pausa muito recorrentes no cotidiano.
  • Relações distintas de comportamentos com outras pessoas;
  • Utilização diferenciada dos espaços.

As estratégias e formas de sobrevivência eram diversificadas, apesar de haver uma tendência de dinâmicas e ações. Cada pedinte tinha seu ponto de morada e de trabalho, sua forma de pedir, de relacionar-se com os demais e de comunicar. Isso significa que as potencialidades criativas em transformar espaços, objetos e situações estavam amparadas nos fundamentos do construir/habitar, sendo este único e coerente com as experiências de vida e leituras de mundo que cada um tinha.

Os corpos estão sempre a comunicar, mas de que forma comunicam? Pela pesquisa de campo, posso dizer que a comunicação está expressa na simbiose entre o corpo e o espaço, ou entre o corpo que se constrói ‘pelo’ e ‘para’ o espaço habitado e o espaço que é construído para e pelo o corpo que se habita.

Heidegger nos coloca que “… o homem é à medida que habita”. Para chegar a essa afirmação, o autor coloca que o habitar não é uma mera conseqüência do construir, mas que o “construir já é em si mesmo um habitar”. Construir/habitar não são apenas relações de meios e fins, em que se habita porque se constrói. “Construímos e chegamos a construir à medida que habitamos, ou seja, à medida que somos como aqueles que habitam”.

Construir/habitar são palavras que na etimologia do antigo alemão é encontrado um único sentido. O autor diz que a palavra buan (no antigo alto-alemão) era usada para dizer construir, que, por sua vez, significa habitar, permanecer, morar. O significado do verbo bauen como habitar foi perdido no decorrer do tempo e, com ele, a concepção originária das palavras em que construir significava habitar. Na palavra bauen (construir) encontra-se a palavra bin, cuja conjugação ich bin, du bist quer dizer eu sou, tu és. “O que diz então: eu sou?… significa: eu habito, tu habitas. A maneira como tu és e eu sou, o modo segundo o qual somos homens sobre essa terra é o Buan, o habitar. Ser homem diz: ser como um mortal sobre essa terra. Diz: habitar.”

Tais reflexões levaram-me a uma aproximação dos processos de apropriação dos pontos de trabalho e de morada e dos modos de vida dos pesquisados, nos quais não se constrói para habitar, mas constrói-se enquanto se habita e se habita construindo. Isso é muito explícito na vida dos moradores de rua.

Mariza exemplifica na prática a simbiose entre o corpo e o espaço processados na unicidade do construir/habitar. Ela é e se torna enquanto está no espaço que a constrói, fazendo-a existir. A árvore, o gramado, o buraco, que “fofila’ seu quarto, são aspectos originários do local e agem como referências determinantes em seu modo de construir/habitar. Tal modo é capaz de produzir sobre tais referências interferências no espaço, que passa a ser e a pertencer ao que ela é e ao que ela se torna sendo. A maneira com a qual se movimenta e utiliza os objetos é o seu construir/habitar, que não deixa de ser o que ela é. Os demais pedintes têm o construir/habitar em seus pontos de trabalho que, apesar de não serem pontos de morada, são pontos de permanência, ou pontos de “de-morar-se”.

No caso da Sra. do Cartaz, ela é enquanto constrói e habita a sua estrutura: cadeira de rodas, cartaz, guarda-chuva e ela própria. Assim acontece também para Dona Evanides e seu Companheiro, com sua sanfona e sua música, guarda-chuva, tamborete; para Hélio com sua cadeira de rodas, papelão e guarda-chuva e para o Sr. Raimundo com sua bengala, semáforo e carros.

O sentido do construir/habitar (encontrado na acepção da linguagem do alto-alemão) não está restrito somente a uma ordem espacial matemática e geométrica e à ocupação dessa mesma ordem. Mas está na amplitude do construir/habitar, o fundar e articular espaços. “Construir é produzir espaços”. Um produzir que não se finda ao alcançar um resultado de determinada atividade, mas um produzir que encontra em sua essência o “conduzir para diante de…, é pro-duzir”.

Nesse sentido, a produção dos espaços da rua como espaços de trabalho e de morada são efetivados pela essência do construir que é “deixar-habitar”; isso significa que, “somente em sendo capazes de habitar é que podemos construir”.

Assim, a comunicação não verbal, que não deixa de ser explícita, dos moradores e pedintes de rua tem o corpo com suas ações e dinâmicas como foco e reflexo do construir/habitar. Este engloba os princípios de territorialidade, presença e pertencimento de seus pontos de morada e de trabalho. Ou seja, ter um espaço delimitado e apropriado que a princípio não é de ninguém, implica sê-lo pelo o que se é e pelo o que se tem. E, só se é quem sabe ser, ou melhor, para habitar deve-se “primeiro aprender a habitar”.

É pelo equacionamento de tais princípios que as apropriações dos espaços e de determinadas situações ocorrem de diversas maneiras. Por vezes, são os objetos que delimitam o dentro e o fora, por outras, são as ações cotidianas e sistemáticas que impõem os limites do que é meu e do que é seu, ou, de quem sou eu e de quem é você.

Aproximando-me dos laboratórios cênicos, alguns aspectos da pesquisa de campo começaram a atuar como referências para a investigação de movimentos e de personas. A base para o início dos laboratórios não esteve, somente, nas análises de suas ações corporais e de suas capacidades expressivas observadas no decorrer de suas rotinas. Mas, encontra-se, também, no material da pesquisa de campo assimilado por mim (de forma consciente ou não) e expresso no trabalho da criação artística. Vale ressaltar que, no decorrer dos laboratórios contei com duas parceiras de trabalho: Susi Martinelli e Giselle Rodrigues.

Desse encontro formou-se uma tríade investigativa: criatividade no movimento por uma perspectiva psicológica (Martinelli), autenticidade do movimento (Rodrigues) e dramaturgia (no caso, esta pesquisa).

Havia uma área de intersecção, na qual se relacionavam algumas inquietações, fazendo gerar, desses encontros, um campo fértil de questionamentos e fazeres inter-relacionados. Discutia-se sobre originalidade na criação, criatividade no movimento, presença cênica, composição, espontaneidade e controle do imaginário, impulsos físicos. Nessa área de intersecção, a pesquisa de campo pôde ser desdobrada em pesquisa cênica, onde as especificidades do trabalho em grupo auxiliaram no desenvolvimento da totalidade do (meu) processo composicional.

A principal questão que norteou o processo de criação da perfomance Lambe-Lambe foi: Como o construir/habitar é vivenciado na elaboração de corpos e espaços imaginários? Até onde as análises de vídeo, fotográficas e labanianas serviram ora como fonte, ora como apoio para o estudo e criação de um corpo dramático em atividade ou em cena?

Trabalharam-se, assim, aspectos da globalidade e da especificidade do campo pesquisado, em que, pelo processo de se materializar e explorar fisicamente o desdobrar de contextos, estabeleceu-se um duplo movimento de apropriação dos elementos pré-selecionados da pesquisa de campo e, ao mesmo tempo, de inserção de novos elementos no improviso-embrião.

Tornou-se viável o entendimento de sua estrutura, sendo esta (com algumas alterações) recorrente à performance final. Predominou, então, o seguinte:

Tabela 1: Estrutura do improviso-embrião


Elementos-base 1
tempo lento; pausa; silêncio

Elementos-base 2
caminhadas em espiral; trânsito de figuras; o grotesco como característica marcante dos movimentos; contato visual com o público

Ações
gesto; tremer; cuspir; cair; limpar; coçar; fumar; contrair; expandir; mastigar; desnudar; articular braços e pernas; produzir ruídos e sons; pausa do guarda-chuva

O tempo lento, a pausa e o silêncio levaram consistência e solidez para que os outros elementos e ações se concretizassem, mas isso não significa que eles foram realizados integralmente, ou seja, por vezes, uma ação era feita com o tempo lento e, por outras, em silêncio, com um tempo moderado e súbito. Foi perceptível nos improvisos posteriores que, se esses elementos não são realizados na prática laboratorial, os demais são enfraquecidos.

Principalmente a câmera lenta possibilita observar no movimento seus impulsos e sua trajetória pelo espaço externo de uma forma sutil, sendo estes difíceis de serem apreendidos na velocidade rápida ou moderada. Os elementos-base 2 foram uma consequência dos anteriores, ou seja, os elementos-base 1, não apenas, ‘estão’ em cena, mas também preparam o corpo para que ocorra a relação com o público, a caminhada em espiral, o trânsito de figuras e, principalmente, a característica grotesca dos movimentos.

Percebe-se que as ações estão vinculadas à rotina dos pesquisados sem, necessariamente, copiá-las em cena. Por exemplo, as ações de desnudar-se e limpar-se estão associadas a Mariza ao tomar seu banho, ou ao Companheiro ao esfregar seu suor na testa. A ação pausa de guarda-chuva com Dona Evanides e a de arrumar-se e articular maxilares (comer o pão) com a Sra do Cartaz. Também as ações de contrair/expandir associam-se ao Sr. Raimundo ao pedir com a mão articulada como uma boca e as articulações de pernas e braços com Hélio.

Obviamente, se a pesquisa cênica se limitasse à literalidade da pesquisa de campo, ambas se reduziriam a uma espécie de saturação. Por outro lado, sem a literalidade da pesquisa de campo (em que se fez a observação meticulosa de seu contexto, de seus corpos e de suas situações) não haveria como propor uma investigação cênica.

Daí a sutileza da relação entre os laboratórios de movimento e o campo pesquisado no qual é imprescindível e instigante um estudo e análise de seu conjunto de dados (do campo pesquisado), enquanto esses mesmos dados não servem para serem recolocados de uma forma limitante, tal e qual, no contexto de cena. Um importante ponto de viragem no desdobrar da pesquisa passou a ser, então, prevenir a investigação cênica de uma obviedade que pudesse restringir a amplitude de seu campo pesquisado.

A prevenção acabou por estabelecer determinadas fronteiras de forma a serem mais bem usufruídas as especificidades, tanto de cada momento da pesquisa de campo, quanto de cada ato criativo investigado nos laboratórios.

Com o desenvolvimento dos laboratórios no decorrer dos meses, comecei a detectar algumas tensões e bloqueios físicos que impediam a circulação do trabalho criativo. Essas tensões não advinham somente de uma tendência pessoal, mas, principalmente, do encontro entre a análise corporal e expressiva de Dona Evanides e o Companheiro, da Senhora do Cartaz, do Sr. Raimundo, da Mariza e do Hélio com o que eu, como atriz-dançarina, corporalmente oferecia.

Cada uma dessas pessoas, com suas variações corporais, resistências e diversas maneiras de se posicionar perante as dificuldades e alegrias de suas vidas, interferiram na maneira com a qual eu me disponibilizava ao ato criativo e o modificaram.

Isso significou alterações internas de meus pontos de apoio, de tensão, de compensação e de eixo no decorrer dos laboratórios. Com essas modificações, não era só o corpo que reagia e se alterava, mas também, algumas perspectivas padronizadas de movimentos e de investigações ante outros horizontes de exploração estética e expressiva que o próprio estudo de casos possibilitou.

Dessa forma, esses bloqueios tornaram-se produtivos, pois explicitaram as tensões entre objeto e sujeito da pesquisa. A problematização do campo pesquisado fora revelada corporalmente (em situação de laboratório e de cena) por meio dessas dificuldades físicas, sendo estas apropriadas ao trabalho como elementos de investigação cênica, agindo principalmente na exploração do movimento grotesco na performance.

Seguem, então, abaixo, as primeiras dificuldades:

  1. Respiração curta;
  2. Tensão na coluna cervical;
  3. Tensão nas escápulas;
  4. Tensão no maxilar e músculos faciais não aquecidos.

Detectando esses pontos como empecilho, passei a trabalhá-los com mais atenção no aquecimento e no próprio improviso, de forma a tentar inverter a situação. Klauss Vianna ressalta que em um processo de criação ou de treinamento é importante que o artista reconheça seus pontos de tensão ou de resistência à força da gravidade. Observando esses pontos de bloqueios “sensibilizam-se as partes mortas e se liberam-se as articulações”.

Dessa forma, os pontos de tensão quando percebidos e trabalhados vão abrindo os ossos por entre as articulações, fazendo com que o corpo se projete para o exterior ou, como diz Barba , se dilate em presença cênica. Essa projeção ou dilatação se constitui a partir do momento em que se tem a compreensão do corpo como um lugar de tensões, apoios, compensações, moldáveis em função do que se quer trabalhar em cena.

Entendendo, assim, meus limites e acomodações, aos poucos os bloqueios deixaram de ser um obstáculo e passei a reconhecê-los como estímulos à investigação de focos criativos de impulsos corpóreos, ou para usar a terminologia de Laban , focos de ‘esforços’ a partir dos quais se tem a origem do movimento.

Para que a estrutura do improviso pudesse ser mais bem explorada, necessitou-se perceber que tais impulsos se manifestavam em determinados pontos do corpo (sem necessariamente ser nos pontos de bloqueio). Passei a dividi-los em focos primários e secundários. Os primários seriam aqueles pontos em que os impulsos se manifestavam de forma intensa e primeira; e os secundários, aqueles que reagiam ao estímulo dos impulsos dos focos primários. Tinha-se, então:

  1. Focos primários de impulsos:

Planta dos pés; região do umbigo (quatro dedos abaixo do umbigo); osso esterno; escápulas; respiração contínua e longa;

  1. Focos secundários de impulsos:

Cervical; punhos e mãos; músculos faciais; joelhos.

Percebendo esses focos, passei a entender melhor o que ocorria em mim enquanto realizava os laboratórios e, posteriormente, enquanto realizava as apresentações. Pude intensificar a investigação de movimentos e estabelecer vínculos mais precisos com o contexto da pesquisa. Isso trouxe emancipação e autonomia com relação ao próprio processo, pois não estava a serviço nem manipulada, mas em comunhão com o ato criativo.

Na tentativa de explicitar as relações entre a performance e o campo pesquisado, segue abaixo a Tabela 2. Na coluna esquerda, encontram-se os elementos da estrutura da performance e, na coluna direita, as associações recorrentes.

Tabela 2. Estrutura da performance e associações recorrentes


Lambe-Lambe: a performance
Mariza; Hélio; Sra do Cartaz; Dona Evanides e seu Companheiro; Sr. Raimundo: os pedintes pesquisados.

Elementos-base 1: câmera lenta; pausa; silêncio
Estes três elementos foram características muito recorrentes na observação da rotina dos pesquisados. O silêncio e a pausa, principalmente, são uma constante quando a comunicação corporal é mais explícita e necessária que a verbal. O tempo lento foi predominante nas análises labanianas.

Elementos-base 2

  1. Caminhadas em espiral:
  2. Relação explícita com o público:
  3. Mistura das figuras 1 e 2
  1. Relaciona-se a Mariza, que utiliza espacialmente o seu ponto de morada de forma circular (p. 95).
  2. Todos estão expostos e cada um tem uma maneira de se relacionar com os passantes. Uns de forma mais impositiva que outros. O Sr. Raimundo, por ser um pedinte de trânsito, impõe o seu pedido a cada carro do qual se aproxima (o pedido é direto, p. 88).
  3. Variedade de situações, sobreposição de realidades e circulação de passantes e suas diversas reações ao serem solicitados como doadores da esmola.

Ações

  1. Tremer
  2. Produção de ruídos e sons
  3. Limpar-se
  4. Arrumar-se
  5. Desnudar-se
  6. Gesto
  7. Valsar
  8. Mastigar
  9. Articular braços
  10. Urinar
  1. Sra do Cartaz ao realizar ações rotineiras.
  2. Sr. Raimundo ao balbuciar palavras diante dos carros e o Companheiro ao tocar sua sanfona.
  3. Companheiro ao enxugar sua testa de suor (p. 84) e Mariza limpando seu quarto e tomando seu banho (p. 71).
  4. Mariza ao organizar seu ponto de morada e ao arrumar as faixas em seu corpo e Sra do Cartaz em sua arrumação dos sacos plásticos e guarda-chuva (p. 77).
  5. Mariza ao tomar seu banho.
  6. É a ação fundamental no ato de mendicância, mas que é mais evidente na rotina de Hélio e do Sr. Raimundo.
  7. Marido ao tocar valsas que fazem lembrar parques de diversões.
  8. Sra do cartaz ao ficar três minutos mastigando um único pedaço de pão (p. 80)
  9. Hélio ao conversar.
  10. Ações íntimas realizadas por Hélio e Sr. Raimundo em seus pontos de trabalho (p. 55) e por Mariza em seu ponto de morada.

Pontos de apoio e tensão

Figura 1: Pontos de apoio nos calcanhares, lombar, cervical.
Figura 2: Pontos de tensão nas omoplatas e lombar.

No decorrer das análises, a percepção dos pontos de apoio e de tensão (nos calcanhares, lombar e cervical) fora vista nos corpos em movimento dos pesquisados.

A composição das cenas no trabalho deu-se a partir de alguns procedimentos de repetição e fragmentação de ações. Tais procedimentos visaram a aprofundar três perspectivas sobre as relações entre o atuante, a sua atuação e o campo pesquisado, explorando também, o estabelecimento de vínculos de distanciamento e de aproximação com a platéia. Tem-se, então:

Cena 1: Baba
  • B1: Silêncio, câmera lenta.
  • B2: caminhada em espiral.
  • Ações: pequenos tremores, mastigar, babar, pausa com o guarda-chuva.

A figura 1 (linhas côncavas) abre a performance, atraindo o foco da plateia para si. Numa posição de pausa com o guarda-chuva (Dona Evanides), a baba significa a fome, a espera, o desamparo.

Ao final há uma passagem gradual da cena 1 para a cena 2, em que se percebem as alterações de apoios e tensões corporais visando a transformação da figura 1 em figura 2 (linhas convexas).

Cena 2: Tô bem?
  • B1: Pausa.
  • B2: Relação explícita com a platéia.
  • Ação: arrumar-se

A figura 2 conduz essa cena cujo foco é dividido entre a performer e a platéia. A cena consiste em arrumar-se para tirar uma foto 3×4. Há uma preocupação excessiva com a própria imagem para agradar ao fotógrafo que, num primeiro momento, é imaginário, mas que depois vira a platéia.

 

A cena 2 é finalizada repentinamente com um desnudamento. Esse desnudar é um ponto de desconexão feito pela figura 3, mas de ligação com a cena seguinte.

Cena 3: Me dá? Toma.
  • B1: Câmera lenta; pausa, silêncio.
  • B2: Relação explícita com o público.
  • Ação: Gesto, pausa.

Nessa cena há uma mistura da figura 2 com a figura 3, onde o corpo nu da performer é vestido por objetos doados pela plateia que acaba por concentrar o foco de atenção da própria cena. O pedido não é feito verbalmente, mas através da intenção do olhar e da aproximação ao possível doador. Essa intenção é um misto de submissão e de sedução. Ao final da cena, a performer retorna aos doadores dando-lhes gorjetas.

 

Cena 4: Mulher tomando banho.
  • B1: Silêncio, pausa.
  • B2: Mistura das figuras 1 e 2.
  • Ações: Limpar-se, gesto.

O foco volta à performer, cujo banho não é realizado com água, mas simbolizado pelo cuidado e limpeza do corpo. No decorrer da análise de campo, em que se estudava a situação do banho de Mariza, associei seu cuidado e delicadeza ao tocar o corpo com a poesia das pinturas de Degas: Mulher Enxugando os Pés e Mulher no Banho 1885/86. Ou seja, sua delicadeza de gestos e seu prazer em limpar-se foram aspectos trabalhados em cena, assim como a realidade em que essa situação fora vista: a ação (do banho) se realizava numa casa com paredes invisíveis.

 

Cena 5: Contando uma história
  • B1: Câmera lenta do corpo em contraste com a velocidade do som produzido.
  • B2: Mistura das figuras 1 e 2.
  • Ações: Produção de ruídos e sons; articular braços.

Essa cena se desenvolve a partir do momento em que se tenta contar, por meio da produção de sons vocais, uma história. Uma das referências, para se realizar essa tentativa de compreensão, encontra-se no balbuciar de palavras incompreensíveis de vários pedintes observados no decorrer da pesquisa de campo.

 

Ao término da história, a figura 3 faz mais uma desconexão ao catar as roupas e vesti-las novamente. Em seguida, é realizada a pausa do guarda-chuva como um ponto de conexão referente à próxima cena.

Cena 6: Doce urina
  • B1: Silêncio, pausa.
  • B2: Caminhadas em espiral
  • Ações: limpar-se, arrumar-se, urinar, desnudamento parcial

O ato (urinar) remete à marcação de território pelo cheiro, sendo este procedimento uma rotina na vida dos moradores de rua e, principalmente, das mulheres. O cheiro ruim as protege de fato como uma roupa, de possíveis agressões e pode, também, explicitar a alteração recorrente de códigos de comportamento (Hélio e Sr. Raimundo realizam ações íntimas como urinar em público) em função da fusão dos espaços públicos e privados.

 

Cena 7: Valsa solitária
  • B1: Câmera lenta.
  • B2: Deslocamento em espiral, mistura das figuras 1 e 2.
  • Ações: Produção de sons; pequenos tremores; valsar

Essa valsa tem como par a calça molhada de urina que fora retirada na cena anterior. Enquanto se dança se cantarola uma valsa.

 

Cena 8: Jogando as cartas
  • B1: Câmera lenta.
  • B2: Mistura das figuras 1, 2 e 3.
  • Ações: Arrumar os documentos da carteira no chão e depois no próprio corpo

O foco de atenção nessa cena é novamente repartido com a plateia. Quando a valsa termina, a performer está no chão e retira um pequeno gravador em que toca uma das valsinhas do Companheiro (tive a autorização dele para usá-la em cena). Abre-se a bolsa e retiram-se os documentos da carteira colocando-os no chão. Em seguida, para concluir, eles são colocados no corpo remetendo à cena ‘Tô bem?’ na qual se tenta tirar uma foto 3×4 com os documentos grudados na pele do corpo da performer.

 

Assim, a produção da estrutura da performance foi em si, o intercambiar das relações traçadas entre as etapas do processo criativo: pesquisa teórica, pesquisa em campo, pesquisa de movimento e de cenas. Essas três etapas são entrecruzadas. Nessa interação de campos, a performance não se autossustenta, já que, em sua natureza, essas relações oxigenam e modificam seu próprio fazer.

Mas ela também não está fechada nessa composição, pois, ao ser comungada e testemunhada pela perspectiva de uma audiência, ela passa a possuir outras referências e sentidos, ampliando, assim, seu próprio contexto criativo. Dessa forma, podemos pensar nessas inter-relações do ato criativo como experiências fronteiriças em que a performance intitulada de Lambe-Lambe se desenvolverá.

Conclusão

Através de minha experiência com o Teatro do Movimento e, mais diretamente com Lenora Lobo, alguns apontamentos chamados por mim de lições são de extrema relevância e norteiam meu ofício como diretora, dançarina e professora de dança e de teatro. São elas:

  • Primeira lição: A generosidade do olhar: ver e ser visto.
  • Segunda lição: Fazer escolhas: exercício de edição do material de criação.
  • Terceira lição: O diretor pedagogo não sabe quando a aula, ou o processo criativo termina para o aluno, ou para o artista.

As duas primeiras lições aprendi na prática cotidiana durante os 11 anos que atuei como dançarina na Companhia Alaya Dança. Um aprendizado que se deu, por vezes, mais na observação do que na própria realização de sequenciais de movimentos e de cenas. Observava e ouvia atentamente Lenora conduzindo os exercícios, demonstrando as propostas corporais e comentando as improvisações de cada dançarino.

O respeito que ela tinha pelo material criativo investigado por cada dançarino fortalecia o estímulo e a necessidade de se pesquisar determinada proposta de corpo, de ideia, ou tema.

Esse respeito vem acompanhado de paciência. Aprendi que cada um tem um tempo valioso de encontro/desencontro daquilo que investiga e que cada um tem uma maneira muito particular de compreender corporalmente o próprio construir/habitar de pequenas cenas recheadas de pequenas ações e enfrentamentos.

No processo dos improvisos o meu olhar focava na difícil tarefa de fazer escolhas. Quais as prioridades? Porque esse e não aquele movimento? Como relacionar aquilo que intuo com a concretude do corpo que pulsa, move, respira e que tem suas limitações? Como exercitar o olhar e a percepção de quem é sujeito/objeto do próprio improviso e editor do material criativo?

São perguntas que, obviamente, não têm respostas definitivas, mas apontam para percursos, trajetórias e linhas investigativas que potencializam o construir/habitar de uma prática corporal cênica e da arquitetura de um pensamento para cena. Quando comecei a dirigir espetáculos e a ministrar aulas e cursos regulares de dança e de teatro essas duas lições foram elucidadas no decorrer de minhas conduções e, também, atualizadas a cada nova turma de alunos e novos processos criativos.

Se nas duas primeiras lições, a relação e o jogo infinito entre aquilo que intuo e aquilo que racionalizo, escolho e organizo é evidente. Já na terceira lição, evidencia-se o “supetão”, a surpresa ao ser pega por reverberações de aulas práticas, teóricas e de processos de criação vivenciados a 5, 10, 15 anos atrás.

Essas reverberações vêm através de memórias de imagens, frases, situações, espaços, pessoas. São memórias que acendem e desligam em um súbito instante e que não vêm carregadas de saudosismos e poeira de coisa guardada. Pelo contrário, elas vêm sempre renovadas e frescas, pois diante de cada súbito instante há sempre artistas e alunos com mundos diversos que atualizam não apenas tais memórias, mas também, minha trajetória passada e atual e estimulando o meu fôlego para a que estar por vir!