Christiane Lapa

Christiane Lapa
15 de abril de 2019 alayadanca

Teatro do Movimento: Uma experiência em arte educação

Durante um bom tempo da minha vida estive entre a necessidade de conquistar um espaço no mercado de trabalho voltado para o fazer pedagógico na área artística – e que ao mesmo tempo me possibilitasse a vivência de ser artista, manifestando essa vontade, não apenas na área da educação, mas tanto também na produção artística, especificamente no universo das artes cênicas/dança.

Quando ainda muito jovem, por volta dos dezesseis anos, normalista, estudante de música pelo Instituto de Música de Brasília e aluna do curso de ballet clássico do Instituto de Ginástica e Estética – IGE (professora Eugênia Mattos), estava certa de que nas artes encontraria um meio de sobrevivência espiritual e material, embora fosse tudo muito difícil, pois que, dentre tantos ensinamentos apreendidos, ficou na minha memória afetiva que a cidade de Brasília estava para o serviço público assim como o artista estava para as cidades do Rio de Janeiro e São Paulo.

Neste contexto de inseguranças quanto ao futuro do artista dançarino, nesta cidade dos concursos, é que optei pelo serviço público/magistério, ingressando para a Fundação Educacional – hoje Secretaria de Educação –, assumindo o cargo de professora.

Paralelamente, continuava a investir nas minhas habilidades artísticas, sempre ouvindo muita música de boa qualidade, tocando muita música erudita e popular no meu velho e companheiro piano, dançando aqui e acolá, onde me convinha e era possível. Dançava muito. Ah! Como dançava! Dançava os clássicos repertórios nas versões acadêmicas, dançava nas escolas onde exercia o magistério, dançava nas festas e nos bailes, dançava em casa quando ninava as minhas filhas, Luíza e Joana, nos festivais de Joinville, Sapatilhas Furadas, de Mironilce Regino, no Grupo Experimental de Dança da UNB, orientado pelo professor Luiz Mendonça, Iara Decunto e integrantes do Endança. Dançava no Grupo Stillo de Rosa Coimbra, na Biodança de Rolando Toro e Tereza Gaioso, dançava com os maravilhosos artistas da Cia Alaya e com o Núcleo Alaya, onde trabalho até hoje, aqui, agora.

Agora e aqui, as lembranças são muitas, e de muito suor e dedicação. As lembranças estão presentes no meu dia a dia, no meu modo de agir e pensar, nas minhas escolhas, na minha fala, no meu olhar.

A dança que eu pratiquei está nas belas fotos, nos vídeos, nos registros publicitários e principalmente no meu corpo que se movimenta com significativa presença de elementos que revelam habilidades que só um corpo dançante pode ter e ser.

A luta por tempos mais tranquilos e de reconhecimento por parte dos segmentos competentes às leis de amparo e incentivo à cultura também sempre esteve presente na minha história de ser artista, na minha história de ser educadora estando artista, na minha história de ser mãe, mulher, dona de casa, esposa, amante, amiga, enfim, na minha história de ser gente. Assim, a iniciativa deste projeto viabiliza o registro de memórias muito significativas para a história dançante de Brasília. Os relatos que daqui surgirão certamente irão ilustrar os caminhos que se fizeram marcantes nesta trajetória de conquistas, alegrias, sucessos e aprendizagens no cenário da dança. É com imenso prazer e satisfação que participo agora deste novo trabalho do Núcleo de pesquisa do movimento da Cia Alaya.

Fazendo um parêntese para citar a minha trajetória artística e a maneira como me percebi engajada num processo de criação de nível profissional é que repito e confirmo a imensa contribuição das aprendizagens adquiridas com o Grupo Stillo de Rosa Coimbra. Minhas primeiras experiências em festivais que remuneravam seus participantes, incentivando e abrindo possibilidades para uma carreira artística encontram-se nesse grupo, que era bastante embrionário, mas que suscitava em minha pessoa a vontade de lutar e lidar com este desafio.

Foram grandes companheiros neste percurso, os artistas que são, em grande parte, até hoje, colegas de trabalho. A citar o querido Beneto Luna, Selma Trindade, Virgínia Da Matta, Ivana, Ana Bugnni, Collins Ribeiro e a eterna Rosa Coimbra, a quem devo imensa gratidão pelo encorajamento e incentivo que me fizeram acreditar que era possível continuar dançando com vinte cinco anos de idade, casada, mãe e professora.

Hoje, escrevendo estas linhas, fico a me perguntar por que tantas dúvidas quando, naquele momento, há vinte anos, eu entendia que estava vivendo uma situação atípica, diferenciada. Provavelmente pelos motivos apontados logo no início da minha fala e que no contato com pessoas que viviam uma realidade bem próxima a minha, no caso de Rosa, e, diga-se de passagem, também dançou muitos e muitos anos, me remetia à vontade pela busca de novos desafios.

No centro de Dança, espaço sagrado e consagrado pelos artistas dançantes como um marco das muitas conquistas realizadas pela categoria que se movimentava para a melhoria das condições de profissionalização, foi quando os grupos considerados fora da lista dos amantes da dança e amadores intercalavam-se nas imensas salas de dança em horários que se compatibilizassem com os outros afazeres dos dançarinos.

Foi nesse espaço de trocas, reconhecimentos e amizades que conheci Lenora Lobo e sua trupe de artistas de meia idade. Olha que grande coincidência! Eles também tinham a minha idade e também tinham filhos, outros afazeres profissionais. Eram bastante alegres e receptivos e também dançavam uma dança gostosa de ver. Essa trupe dançava de um jeito diferente, que fazia a gente se contagiar com aquela riqueza de movimentos que revelavam um toque de originalidade ou, talvez, naturalidade. Era uma movimentação espontânea como que deixando o corpo se expressar livremente, embora tivesse os comandos de Lenora Lobo quanto ao ritmo da música sugerida e alguns outros elementos que contribuíam para os artistas se movimentarem no espaço de criação. Mas não podia ser diferente, pois as primeiras apresentações que apreciei foram nada mais nada menos que as remontagens de Forró e Frevo, espetáculo do qual fui convidada a participar momentos depois, interpretando o sanfoneiro.

Em seguida, lá estava eu fazendo a menina de tranças dançando um forró prá lá de arretado, dançando no Frevendo, de Brasília, bebendo da fonte de Olinda, dançando os homens e as mulheres daquele arraiá da feira, da festa, da farinha e do forró. Esta experiência foi como me reportar às minhas origens de nordestina, do Piauí, nem imaginando que tempos depois, Lenora investiria neste caminho de descobertas e criações: as nossas próprias origens para falar, melhor dizendo, para dançar os sentimentos, as sensações, as lembranças, as memórias, as afetações do nosso corpo que é o depositário de infinitas lembranças.

Todo esse delicioso movimento aconteceu paralelamente à pesquisa e montagem do… E sonha Lobato, espetáculo que teve a consagração de participar das melhores vitrines de festivais de dança deste país. Sem dúvida, fui pega pelo encantamento que suscita esta obra prima e no que me transformou observando aqueles maravilhosos artistas dançantes. Sei que me afetou de alguma forma, tanto que fiquei com muita vontade de me aproximar e participar mais e mais daquele grupo de pessoas cujo ensaio mais parecia uma festança, uma celebração. Parecia ser gostoso de fazer, e, ao mesmo tempo, vivia um momento muito especial, pois estava em pleno gozo com a condição de ser mãe, mulher e amante das artes, dançando, semeando, amamentando, criando, cuidando das minhas crias, e, foi inevitável não me apaixonar por aquele ritmo, tempo e espaço provocados pelas experiências e vivências que pude observar, do que se era possível reconhecer como resposta ao método aplicado por Lenora Lobo.

O método que incluía o Triângulo da Composição. O método da importância do princípio da trindade, comentada por Lobo em seu primeiro livro: Teatro do Movimento, que agora percebo que, coincidência ou não, embora reconheça que nada é por acaso, neste momento de ir ao encontro desta trupe, estava me reencontrando, reconstruindo, recomeçando, renascendo, reinventando, recriando, renovando, pois que, agora, éramos três: eu e meus dois amores, Luíza e Joana.

Esta triangulação sendo manifestada em tantos outros movimentos da vida, bem lembrado no texto de Lobo naquele momento em que me deparei com o método, era perceptível a estruturação de uma proposta metodológica que, na minha condição de mãe e professora, implicaria num aprendizado de infinitas recompensas, pois que, me afetando de tal maneira, e que naquele momento, lecionando para grupos de adolescentes do ensino fundamental na disciplina de ciências físicas e biológicas, é que pude perceber o quanto aquele aprendizado advindo do Teatro do Movimento estava me auxiliando na busca de condutas mais humanizadas e de processos mais criativos na sala de aula.

Quando me apropriei deste novo estilo de dançar, e junto a tantos outros afazeres da minha rotina, foi que retornei para os estudos, indo ao encontro das artes cênicas. Nas aprendizagens adquiridas com a formação acadêmica da universidade e da formação advinda dos processos laboratoriais do teatro do movimento como dançarina, começava a ficar evidente a importância do movimento no meu corpo que se expressava criativamente e com sensibilidade para reconhecer elementos importantes no processo educativo tais como: criatividade, expressividade, dinâmica, atenção, memorização, observação, reconhecimento e apropriação do espaço da escola, dentre outros.

Descreverei mais à frente algumas dessas experiências bem sucedidas na sala de aula. Agora é preciso retornar ao princípio.

Meu começo no Alaya foi no ano de 1995, ou seja, após cinco anos de percorrida estrada dos veteranos que já pesquisavam no estúdio de dança Alaya – Arte do Movimento. Como citei, meu começo foi na brincadeira dos exercícios e atividades bastante prazerosos e de descoberta do próprio potencial expressivo e de desenvolvimento de habilidades corporais sem nenhuma necessidade de demonstrar virtuosismos tão exigidos nas salas de danças convencionais.

No Teatro do Movimento, aprendi a respirar, alongar, caminhar, articular percebendo cada parte do corpo. Com o método, eu e meus colegas de trabalho descobrimos a habilidade da escuta tão significativa para os tempos da correria, da ausência e da individualização. Perceber-se e perceber o outro são atividades corriqueiras numa aula dessa formação. Logo depois que me consagrei parte efetiva da companhia, quando então Lobo sinalizou sobre a intenção de sistematizar e tornar pública toda gama de conhecimentos de sua vasta bagagem de artista, arquiteta e educadora, pela elaboração de seu primeiro livro, comecei, então, a me dedicar à companhia Alaya e a participar de todas as produções dos vários espetáculos propostos em parceria com vários artistas da cidade.

O processo criativo na elaboração dos espetáculos reverberava no meu modo de pensar e agir, pois, carregava aquele acervo de ideias e criações para todos os lugares habitados por mim, numa trajetória de sonhos e realizações da mais infinita importância. Zelava daquele movimento porque se apresentava como um modo de vida ou uma maneira de ser e de estar, interagindo com o mundo.

Recordo-me de que certos exercícios me auxiliavam na compreensão de que podemos melhorar nossa postura diante da vida, podendo flexibilizar ou pontuar melhor o que desejamos, enfim. As aulas e os ensaios, quase todos realizados no Centro de Dança, significavam para mim um ato de sobrevivência e fortalecimento da autoestima comprometida por ocasião dos desafetos e intransigências que o destino sempre acaba por revelar.

Os exercícios tão simples e de tanto significado como caminhar de diferentes maneiras, seja, batendo os pés no chão ou deslizando, caminhando em diferentes direções, observando o alinhamento do corpo e abrindo bem a planta dos pés. Isso me conduzia para a possibilidade de movimentar a minha história para diversas direções e com a determinação de alcançar um objetivo.

Caminhar batendo forte com os pés me remete, por exemplo, à necessidade de estar presente e com o que está acontecendo naquele instante, naquele momento. São acessados os dispositivos da atenção e da coragem de enfrentar o mundo. Certa ocasião, em que estávamos numa dessas aulas de aquecimento e preparação para a criação, num ritmo de música frenética, acompanhava o grupo que andava de diferentes maneiras como na ponta dos pés ou caminhando com os metatarsos, com as bordas internas e externas dos pés, com os calcanhares e outras variações, a sensação era de um frenesi gostoso que ativava o meu centro, a minha cavidade abdominal, originando energia e vitalidade inesquecíveis. Essa atividade repetia-se várias vezes até à exaustão em algumas ocasiões.

A sensação de bem estar pela força vital que percorria em todo o meu ser, fazia com que o meu senso de observação e disposição para a atividade coletiva e de produção criativa se perdurasse por muitos e repetidos momentos, pois que, no ambiente do meu trabalho escolar, isso ressurgia.

Então, no espaço pedagógico da escola, quando estava desenvolvendo um projeto cujo título era: Razão das ciências através da sensibilidade das artes foi possível vivenciar atividades corporais e de movimento com o objetivo de ativar os canais sensíveis dos alunos que, pertencendo a uma rede de ideias voltadas para o aprendizado ‘conteudista’, passa a ser, no meu entendimento de educadora e artista, um aprendizado de conhecimentos adquiridos a partir das sensações e percepções dos alunos criativos que, embora tenham contato com os temas sinalizados pelos currículos vigentes, passam a perceber a importância dos seus próprios saberes e inteligências.

O desafio de conduzir e mediar o conhecimento voltado para a área das ciências biológicas nesta perspectiva construtiva de que o saber está no aluno, em sua história de vida, nas marcas corporais, nas estruturas mais profundas do seu ser interior, foi adquirido, em grande parte, pelo aprendizado das aulas de dança. Nesta dança que facilita a expressão dando sentido às inteligências sensoriais, cognitivas, afetivas, motoras, artísticas e tantos outros saberes.

A compreensão destes significados ficava mais evidente à medida que conectava mais com o método e desenvolvia mais e mais as habilidades adquiridas no aprendizado dos exercícios, indicando resultados positivos tanto na realização dos produtos artísticos, quanto nas realizações profissionais de outros espaços.

No Teatro do Movimento, com sua proposta metodológica de ensinar não apenas uma infinidade de passos ou uma variedade de coreografias antes de qualquer pretensão de tornar os seus adeptos em exímios bailarinos, havia um cuidado com a pessoa e sua história a ser expressada corporalmente.

Assim, me senti completamente à vontade e com muita necessidade de permanecer naquele espaço tão receptivo. Não media esforços para estar lá, no templo da criação, pois era evidente que as aulas de dança com essa metodologia me faziam sentir em contato com minha alegria de viver, com os meus desejos e necessidades e com o meu modo de ser.

Sentia certo frio na barriga, gostoso e com cheiro de coisa boa no ar. Um arrepio desses que sinto agora neste exato momento quando estou relatando sobre estas deliciosas memórias. São memórias vivinhas que estão aqui em algum lugar. Melhor dizendo, em todos os lugares.

Um dos processos artísticos mais importantes que pude observar foi o que desenvolvi no trabalho: Origem, cuja proposta estava voltada para a criação de uma cena que se realizaria partindo das nossas memórias, dos nossos estados ou cidades naturais com crenças e costumes impregnados em nossos modos de ser.

Durante os laboratórios na busca e levantamento de materiais necessários para o trabalho solo, vieram lembranças remotas do tempo da minha infância em Teresina. Vieram as lembranças de muita brincadeira de rua. Brincadeira de corre-corre, de pula corda e amarelinha, de cobra-cega, e de esconde-esconde. Brincadeiras que se estendiam na adolescência vivida na cidade de Brasília, no quintal da doze norte. Vieram lembranças da culinária de gosto forte e apimentado tal qual o calor do Nordeste. Vieram as lembranças das matracas gritantes e da batida do pilão fazendo paçoca de carne seca. E tudo isto somado numa performance de trinta minutos intitulada: Num encontro, um pedido, um zumbido no ouvido, e que não apenas reforçou a minha vontade pela dança mais contribuiu com o repertório de espetáculos de Cia Alaya, pois que este solo originou o espetáculo Matracar.

O Matracar fala de sonhos e encantos do folclore nordestino. É fundado na lenda do boi, do Maranhão e fala das lavadeiras e das futriqueiras alimentando o seu dia-dia com as intrigas e fofocas da redondeza, fala da reza, da oração, do namoro, das cirandas e cantigas de ninar.

Transmitindo beleza, graciosidade e humor neste trabalho que finalizou um ciclo de espetáculos produzidos pela Cia, identificamos com clareza nos corpos dançantes e de gestuais característicos para esta finalidade, aspectos do método. É no processo investigativo e de construção dos personagens que vão tomando formas, jeitos e trejeitos peculiares, que observamos o Triângulo da Composição se manifestar.

Quando começamos a pesquisar sobre as culturas eleitas para o ponto inicial do Matracar, por exemplo, trabalhamos acessando nosso imaginário criativo. Este imaginário motivado e ativado para penetrar no universo lendário do Boi que encanta com sua magia de cores e sedução. Como Lenora Lobo aponta em seu livro, mencionando sobre este vértice do Triângulo, “o ato da criação é uma espécie de iluminação onde o corpo revela em plenitude, informações guardadas na memória corporal e processadas na imaginação”. De fato, conseguimos corporificar o que para cada um dos dançarinos significava serem os personagens que fariam parte daquela composição.

Pois bem. Seguindo este entendimento, percebia em mim uma expansão ou amplitude, se é que é possível dizer desta maneira quando me refiro a um alargamento dos meus quadris na busca de encontrar uma movimentação exercida por um boi, por exemplo. Sim, os meus quadris se alargaram, sem dúvida alguma. Os meus pés com esta experiência de dançar como um boi, caminhar e gesticular como tal, sem dúvida alguma me fez alargar os pés, mantendo-me mais enraizada, talvez.

O laboratório para a busca expressiva das matraqueiras ou futriqueiras suscitou em mim a vontade de trabalhar a oralidade sendo motivada a contar causos, contos e histórias improvisadas e articuladas como que decifrando o que eu quero expressar verbalmente. Este espetáculo foi e será divinamente precioso, um verdadeiro presente dos deuses.

Tudo começou com a sonoridade das matracas gritantes, com o olhar sensível de uma direção que é a favor da integridade corporal e suas expressividades naturais, da celebração aos rituais e festanças folclóricas reinventadas na contemporaneidade. Poderia ficar horas relatando sobre os espetáculos e seus processos inventivos e dos movimentos que se estruturam para a elaboração das cenas. Na resposta de cada trabalho, é possível me perceber transformando, me redescobrindo para novas investidas. É incrível reconhecer o quão inteligente é nossa carne que se manifesta de diversas maneiras, utilizando-se de alongamentos e de contrações, das articulações que parecem querer desgrudar do músculo; ou simplesmente me percebo sendo conduzida para diversos lugares, em espaços e tempos diferentes. Em espetáculos como o Primata Terra, por exemplo, precisávamos trabalhar com a ideia da verticalidade corporal. Para tanto, inúmeros laboratórios foram realizados com o objetivo de nos sensibilizar quanto à postura do Homo Sapiens e o contato maior com a terra. Dessa maneira, o acesso às vivências de exercícios com a coluna vertebral foi intenso. É evidente que nesse processo consegui muitas conquistas nos ajustes que o fiz corrigindo a minha postura através do caminhar correto, pisando com firmeza e determinação. Caminhando corretamente, em primeiro lugar pisando com os calcanhares e em seguida com os metatarsos. Foi um aprendizado fabuloso onde percebi ganhar alguns centímetros a mais.

Sim, fica constatado pelas inúmeras experiências adquiridas nas aulas de corpo e movimento que essa transformação é verdade registrada nos corpos que se privilegiam de tal dinâmica. Parece brincadeira de mágica. A gente cresce quando brinca de expandir o movimento e, na contração, podemos brincar de voltar ao útero materno, lá, bem pequenininho, onde tudo começou.

O escritor José Gil relata sobre esses acontecimentos inerentes à condição do bailarino. Ele afirma ser a dança uma sucessão de micro acontecimentos que transformam continuadamente o sentido do movimento e revela que “a toda transformação de regime energético corresponde uma modificação do espaço do corpo. Esta modificação consiste sempre em certas formas de contração ou de dobragem, de dilatação ou de distensão do espaço” (Movimento Total; página 54).

José Gil refere-se aos espaços exterioridade e da interioridade do corpo em movimento, do corpo que, segundo ele, produz ao dançar unidades de espaço-tempo singulares e indissolúveis e que transmitem toda a sua força de verdade a metáforas como: uma lentidão dilatada ou o alargamento brusco do espaço que descrevem certos gestos do bailarino.

Importante se faz também revelar a prontidão do corpo para a ação criativa quando percebemos a importância da instabilidade que se instaura no momento das descobertas. Sim, pois que as ações criativas nem sempre se manifestam por motivações racionalmente elaboradas e de respostas que possam estar sob o julgo de mensurações.

Em muitos processos criativos, melhor dizendo, em quase todos, expressões como: sair do eixo, desequilibrar o corpo, proporcionar vibrações até uma exaustão são comuns para o artista e neste caso específico, para o bailarino, nem sempre a postura correta ou o caminhar coerente de quem demonstra certo conhecimento acerca de uma consciência corporal farão parte da gama de elementos que colaboram para este fim.

Nesta surpreendente sensação de instabilidade, da mesma maneira que na elasticidade percebida na expansão corporal que se movimenta na busca de espaços que se desdobram e que se manifestam na ação criadora, é que encontramos na fala de Gil uma compreensão de que a dança torna o corpo instável, o corpo, diz ele, “procura um equilíbrio no desequilíbrio”.

José Gil comenta que “o equilíbrio não depende do simples jogo de forças materiais em presença, mas de maneira como a consciência do corpo as reparte” Ainda conforme o autor, “o bailarino não se limita a conservar o equilíbrio comum; tem que começar por produzir a instabilidade do sistema-corpo, levá-lo para além das suas possibilidades naturais de estabilização a fim de construir um equilíbrio superior, não estático, não aprendido por ocasião da aprendizagem da posição do pé” (Movimento Total; página. 22).

“A arte do bailarino consiste em construir um máximo de instabilidade, em desarticular as articulações, em segmentar os movimentos, em separar os membros e os órgãos a fim de poder reconstruir um sistema de um equilíbrio infinitamente delicado (Movimento Total; página 23).

Reconheço essas maneiras de expressão em mim, corpo dançante, corpo criativo, corpo de informações sutis que fazem vibrar e acordar espaços pouco ou talvez, nunca acessados.

Aprecio as imagens no espaço circundante a partir do meu corpo que as imprime com delicadeza, agilidade, força, velocidade, harmonia ou não e sempre com as inevitáveis parcerias, pois não estamos nunca e em tempo algum, a sós.

E cabe neste momento de tantas revelações, apresentar em verso o que despertou em mim, em meu corpo, em meu ser, pois, este momento que é único e não volta, porque dele consumiu-se restando a lembrança, quem somos? E a canção continua… e a dança, dançando em prosa e verso, percebo nascer e crescer o sucesso; ao contrário do que se pensa, é infinitamente fascinante, é jogo de sedução. E a canção, continua, e a dança… é melodia que entorpece e faz lembrar de tempos bons e de boa colheita. Parece receita gostosa de dá água na boca!

E a canção, continua, e a dança? Quem somos? Nós? Atados? Som? Sussurro… calo… no sapato. Nota Ré? Menor? Que Dó? Tenho a sensação de que Lá no fundo é muito Maior. Nota 100 ou nenhum valor? Que Dó! Sempre de Ré? Ainda de segunda? E sábado? Continua… Lá Si vai o nó na garganta. Nós em Si mesmo? E é só, mentira. Retira este lá, lá, lá. É grave, faço greve, fico brava e grito: Bravo, bravo, bravo, companheiros! Compreendo agora o canto, a voz e a dança de todos nós. E, noutro instante, quem sabe… Nós? Iremos para qual espaço?

Nós dançarinos, viajantes de caminhos desbravadores, incansáveis, insistentes, persistentes sonhadores de pés enraizados, iremos para qual espaço e tempo? E por falar em tempo e espaço, voltarei para o discurso que remete ao meu trabalho de bailarina e educadora, apontado anteriormente.

Pois bem. Professora, trabalhando com turmas do ensino fundamental, séries finais e com a disciplina de ciências físicas e biológicas, desenvolvendo um projeto voltado para a importância de uma pedagogia do movimento, trabalhando com a responsabilidade de suscitar nos alunos a vontade pelo aprendizado com vistas à fundamental importância de reconhecer potenciais, não apenas cognitivos, tão comuns no ambiente escolar, mas, principalmente, reconhecer estes potenciais em nossos corpos-sistema, como diria José Gil. Corpos que se expressam que se manifestam, e que se façam reconhecidas estas inteligências, é que percebi que o método do Teatro do Movimento me auxiliaria a realização destes objetivos.

Enquanto professora, reverberava em mim todo trabalho de criação e manifestação da dança, transformados em meios eficazes de se alcançar uma dinâmica mais sensível e produtiva nos processos resultantes dos alunos.

Quando me sentia afetada pelo que era proposto no espaço criativo dos ensaios da Cia, seguidamente, nas minhas aulas ou mesmo em encontros pedagógicos com os colegas professores ou em oficinas de corpo e movimento do qual inúmeras vezes fui solicitada a ministrar, repassava as atividades como quem coordena as ações objetivando prioritariamente a manifestação criativa, deixando em abandono as situações meramente imitativas ou mecânicas. Como por exemplo, a repetição de padrões como cópias infindáveis dos livros didáticos.

Vamos clarear um pouco mais acerca disso: os alunos habituados a reproduzirem de maneira mecânica as respostas de acordo com determinado conceito, nas célebres cópias dos livros-textos, ou das apostilas, ou de qualquer outra referência, quando da vivência de atividades que ativam globalmente os nossos corpos pensantes, sensíveis, inteligentes e de outros saberes, fica claro que as respostas surgem com maior apropriação de quem se arrisca a elaborar suas próprias respostas, sendo donos das suas verdades, embora existam os temas a serem abordados, as referências bibliográficas, bem como, nesta perspectiva sempre eram preservados e respeitados o importante papel dos livros didáticos.

Neste entendimento, o fundamental é que se reconheçam os meios facilitadores ou que colaborem para que o aprendizado seja significativo, seja contextualizado e que tenha despertado no aluno o interesse pelo conhecimento.

Então, quando no convívio com uma turma de estudantes para fazer uma leitura sobre o sistema de sustentação abordado no livro-texto de ciências, meu objetivo é que os alunos compreendam sobre as funções exercidas por este sistema, tanto quanto saibam reconhecer os principais órgãos e articulações do mesmo. Saibam também como prevenir algumas doenças originadas pela má colocação e organização do corpo no espaço.

Ora, nós, profissionais de dança, sabemos tanto sobre a importância de um caminhar mais correto, posicionando a coluna vertebral em busca de um alinhamento perfeito, e articulamos nossas dobradiças com tamanha destreza, enrolando e desenrolando a coluna vertebral, no intuito de melhorar este grande eixo do equilíbrio, não? Imaginem o quanto se torna interessante para os alunos apreenderem isso num processo dessa natureza. Ou seja, quando lhes são permitidas as vivências corporais nas atividades de caminhar, movimentar as articulações, movimentar a coluna vertebral, exercitar o corpo para adquirir maior flexibilidade, para então dialogar com os livros didáticos, sem dúvida se podem ter um maior interesse pelo aprendizado, pois que o conhecimento deixa de existir como algo distante e sem nenhuma importância.

A música tem lugar privilegiado como estímulo para as vivências nestas aulas, tanto quanto, a viabilidade de jogos teatrais para as diferentes atividades.

Inúmeros exemplos de aulas de ciências revelavam a importância de um saber sensível na construção do aprendizado significativo. Como o próprio termo diz, significativo é aquilo que tem significado, tem importância e, tendo significado, presume-se num valor ou coisa que a nós importa, fazendo estimular nosso interesse.

Sensível a essa realidade de que não poderia apenas repassar os conteúdos para os meus alunos, fazendo-os depositários de um conhecimento aparentemente distante deles e sem significado algum, foi que me aproximei do Teatro do Movimento, somado aos jogos teatrais, vivências e dinâmicas aprendidas na experiência de ser bailarina da Cia Alaya e estudante de artes cênicas na UNB.

Na intenção de trabalhar não apenas o aspecto criativo, mas a observação e estimulação à participação ativa na sala de aula, foram imensamente aproveitados os exercícios que advinham do movimento e da dança como forma expressiva de conhecer e reconhecer no corpo as diversas funções e reações que nele pulsam. Percebia a cada relato dos alunos, em seus ‘diários de bordo’, que o aprendizado na área das ciências não poderia distanciar-se do saber que “nosso corpo (e toda sensibilidade que ele carrega) consiste, portanto, na fonte primeira das significações que vamos emprestando ao mundo, ao longo da vida. Produzir sentido, interpretar a significância, não é uma atividade puramente cognitiva ou mesmo intelectual ou cerebral, é o corpo, esse laço de nossas sensibilidades que significa, que interpreta”, como diz João Francisco Duarte. (O Sentido dos Sentidos; página130), citado no meu projeto de diplomação Escola em movimento: Uma experiência em arte-educação.

Quanto da flexibilidade e mobilidade do meu corpo conquistada pela vivência sugerida nos trabalhos corporais devo apontar foi fator imprescindível na experimentação de novas condutas em sala de aula.

Reorganizar carteiras, armários e outros objetos que ocupavam a sala de aula em função de um novo espaço para a realização de exercícios práticos de conscientização corporal fundamentados nas ações básicas do movimento e outros elementos apresentados pela metodologia abordada e dispensar o livro texto para que não fosse o único recurso didático, para melhor dizer, não viciar à acomodação dos conceitos já existentes no intuito de fomentar as próprias perguntas-respostas se concretizaram para uma articulação mais verdadeira do aprendizado.

Fazer grandes círculos e sentar no chão para a chamada inicial, estimulando os jovens alunos a se apresentarem indicando um gesto, ou uma máscara facial diferenciada – prática vivenciada no Teatro do Movimento – era prática quase diária.

De acordo com a fala de Lenora Lobo (Teatro do Movimento, 2003, página 85), “o aprendizado se dá pela retomada de consciência e não através da repetição de movimentos pré-concebidos, como acontece nas ginásticas e nas técnicas codificadas de dança”. Assim me reporto ao universo do qual venho descrevendo acerca das aprendizagens significativas e da não repetição dos conceitos abordados na escola de fabricar reproduções em corpos sem acesso à criação.

Dessa maneira, sendo eu despertada e estimulada a cada vez que participo das aulas de dança canalizadas para o propósito o da criação, devo salientar que este aprendizado reverbera nas minhas tantas outras situações de vida.

Quando Lenora Lobo escreve sobre o conhecimento mecânico do corpo (Teatro do Movimento; página 86), comenta que o movimento acontece “numa engrenagem entre vários sistemas que cooperam entre si, dentre eles o sistema neuromuscular, que por sua vez reage às emoções de um corpo que tem seus sentidos em alerta”, ela torna verdade meu discurso e prática de mãe e educadora afetada por este sistema de ideias e práticas comprometidas com o entendimento do sistema ósseo, articular e muscular, na obtenção de conduzir ações que permitam o desenvolvimento de habilidades e capacidades para o estudo e compreensão do corpo e do movimento criativo.

Quanto a essas capacidades, a abordagem corporal passa a ter sua devida importância e, de acordo com Lobo, “a relação com a ciência se faz necessária não se devendo esquecer, porém que estudos de anatomia e física somente serão de grande eficácia quando vivenciados no corpo que se prepara, conscientizando-se de sua capacidade motora, e consequentemente, de sua capacidade expressiva”. E não poderia ter uma resposta diferente diante da grandeza que é a metodologia idealizada e sistematizada por Lobo.