Alexandre Nas

Alexandre Nas
15 de abril de 2019 alayadanca

Reflexões sobre o Teatro do Movimento

Introdução

Este é um depoimento reflexivo a respeito dos desdobramentos de uma prática em dança que se consolidou sob o nome “Teatro do Movimento”.

Essa proposta metodológica foi gestada, desenvolvida e aplicada por Lenora Lobo, na cidade de Brasília, ao longo de mais de 20 anos de pesquisa e criação em dança.

Diversos artistas do movimento integraram as variadas etapas de estruturação e consolidação dessa proposta; cujo percurso se assemelha ao de um enraizamento que se estendeu por diversos territórios do fazer da dança. Isso abarca tanto a vivência da “prática de uma aula de dança”, quanto à experiência de integrar processos de pesquisa coreográfica e de se apresentar em espaços de teatros, galerias, e mesmo ao ar livre. Estendendo-se, ainda, pelo fértil terreno da composição em dança.

Tal abordagem é ancorada: em princípios e práticas da técnica Klauss Vianna; nos estudos coreológicos, desenvolvidos a partir do Laban Centre London, como uma

“prática acadêmica da dança, ou seja, de um sistema de estudo, provido de uma metodologia própria – minuciosa e coerentemente concebida -, que permite analisar, registrar e comunicar dados teóricos e práticos de maneira inteligível, confiável e de fácil interpretação; não só em termos quantitativos, mas também em termos qualitativos. Este sistema tem provado ser capaz de conjugar o exercício de uma prática teórica sólida, metodologicamente consistente, com o de uma prática artística de recursos potencialmente inesgotáveis para a criação de trabalhos de dança teatral” e nas vivências de Lenora Lobo em diversos nichos da dança moderna, pós-moderna e popular, além de outras técnicas de consciência corporais, tais como Body control, Alexander Tecnique, Contato improvisação, entre outras.

Porém, mais do que uma codificação de técnica de dança, Lenora Lobo parece apostar num imbricamento desses modos de vivenciar movimento e dança, dando ênfase a “um corpo memória, ou de uma memória corpo que constrói o movimento e, a posteriori, a dança de cada um”2. Para tanto, utiliza como fundamento de sua prática pedagógica e artística a constante observação, análise e a discussão colaborativa com os dançarinos e alunos a respeito de percepções, sensações, insights oriundos dessas experiencia-ações.

Com a Cia Alaya Dança, fundada em 1990, Lenora deu início à sistematização do método, com a “trans-figur-a-ção” de seus alunos em artistas do movimento, aos quais foram “propostas estratégias de criação, improvisação e pesquisa” que, organizadas e estruturadas por Lenora, enquanto composição coreográfica, “vão resultar nos espetáculos”4da Cia. Estes foram apresentados em vários centros difusores do país por meio de festivais, mostras, produções independentes e/ou subsidiadas por órgãos e programas governamentais de incentivo à cultura (FUNARTE, Correios, entre outras), sendo referendados por críticos e pelo público em geral.

Parece-nos que um dos pontos mais importantes nesse processo é o foco na diversidade de “corpos-memórias” estabelecendo diálogos sobre um mesmo tema; o que tem resultado num terreno fértil e multifacetado para a estruturação da cena.

Nesse sentido, o conjunto de procedimentos metodológicos referentes ao “laboratório origem”5 aprofunda a investigação desse corpo-memória, estimulando o dançarino a escarafunchar alguns “recortes de sua memória corporal/afetiva”6. Re-visitar resíduos imagéticos/sensórios/cinestésicos/sinestésicos de sua origem, de suas histórias, de seus afetos e re-elaborá-los, por meio da composição coreográfica, eis a tarefa.

A proposta desse laboratório funciona com uma espécie de “rito de passagem”, ao estimular um processo de amadurecimento em termos artísticos, onde se explicitam as escolhas tanto no modo de seleção e organização da matéria-prima/movimento, como nas nuances do desempenho na cena. Aqui, começa um trabalho de definição do estilo individual de compor dança.

A sistematização desse laboratório promoveu a geração de várias composições dançantes que foram difundidas por meio das Mostras de Intérpretes-Criadores, dando início a um novo patamar organizacional, denominado Núcleo de Pesquisa Alaya Dança.

Assim, após 21 anos desde a fundação da Cia Alaya Dança, é de fundamental importância que seus integrantes possam registrar seus depoimentos e reflexões sobre os desdobramentos desse método em suas práticas de dança. Principalmente porque, como a dança provém e ainda se difunde, na maior parte do Brasil, por meio de uma tradição oral e por vivências ancoradas num modelo “mestre-discípulo”, os registros podem servir como rastros do ambiente e da época em que o pesquisador/dançarino atuou, atenuando os danos que a falta de memória ainda apresenta em termos da cultura.

Caminho para a dança

Uma vez que o método investe na autonomia do dançarino estimulando o desenvolvimento do seu próprio dançar e a história pessoal é de fundamental importância na apropriação desse fazer, parece sensato expor porque me interessei por dança e como está sendo esse percurso.

Nasci na recém inaugurada cidade de Brasília, DF, em 1963. Época do prenuncio de acontecimentos que alteraram significativamente as possibilidades de livre expressão de idéias no nosso país, em diversos campos do conhecimento, por meio do estabelecimento de um regime ditatorial que perseverou por vinte anos.

Ainda hoje, quando olho o mapa desse território central, cercado por Goiás de todos os lados. Surpreendo-me com sua forma quadricular e seu tamanho, que destoam da maior parte dos estados brasileiros; e que ao mesmo tempo congrega os mais diversos representantes das forças políticas do Brasil, além de diversas tradições sócio-culturais do Brasil. Estas foram difundidas pelos imigrantes de outros estados brasileiros que aqui aportaram, em busca de oportunidades advindas do processo de construção da nova capital do Brasil.

Filho de mineiro com carioca, re-lembro de minha infância povoada por imagens das formas geométricas presentes nas edificações monumentais claras do plano piloto, contrastando com a terra vermelha; dos flamboyants e das demais árvores cultivadas, contrapondo-se às árvores do cerrado.

Apreciava brincar de saltar de um galho para outro das árvores, bem ao estilo dos primatas. Muitas vezes subia o mais alto possível, acomodava-me próximo ao topo da copa e contemplava, pelo meu olhar de míope, o pôr do sol, as formas borradas das nuvens, o horizonte e, invariavelmente, sentia-me em meio a uma vastidão sem fim. Meu coração batia forte, mas eu não me mexia, apenas contemplava. Afinal, como e para onde me mover? E como talvez voar fosse uma boa solução, e eu não era pássaro, gostava e ainda gosto de devanear.

Um faz de conta interminável, de onde emergiam incontáveis imagens e sensações, causando estranhamentos, deflagrando percepções ainda insuspeitas, outras horas plenamente conscientes.

É desse caldeirão imagético/sensório que ainda brotam muitas das minhas inspirações para o processo criativo em dança.

Lembro de gostar de dançar desde minha meninice, em festas de aniversários de amigos da super quadra sul 405, onde vivi por muitos anos, e nas comemorações nas casas de familiares.

Também assistia, inebriado, os filmes com cenas de dança, ou seja, os musicais produzidos pela indústria cinematográfica norte-americana nas décadas de 50 e 60, disseminados pelas então recentes emissoras de televisão brasileiras. Fred Astaire, Jane Powel, Jene Keely dentre muitos(as) outros(as) povoaram o meu imaginário com suas performances dançantes.

Assim, o desejo de vivenciar aulas de dança existia, mas onde e como realizá-lo?

As pesquisadoras Cunto e Martinelli apontam que os estilos de dança difundidos na cidade, até meados da década de setenta do século passado, foram predominantemente o ballet e, menos intensamente, o jazz e a dança de salão; ambos com fortes raízes nas práticas de dança do Rio de Janeiro, principalmente na formação levada a cabo pelo Teatro Municipal da ex-capital do Brasil.

Assim, num contexto onde os meios de disseminação de informação eram restritos ao jornal e poucas revistas, portanto desprovido dos meios eletrônicos de hoje, a opção mais viável era o ballet clássico.

Outra pergunta surge; posso?

Naquela época, e ainda hoje em alguns nichos sociais, a dança, sobretudo a clássica, parece associar-se predominantemente ao âmbito do feminino. Assim, me senti desconfortável com as possíveis reverberações que tal escolha pudesse ter no âmbito do território onde eu estava circunscrito; ou seja, o medo de ter a construção masculina colocada em dúvida pelos amigos emergiu. Nessa perspectiva, tanto Stinson8 com suas pesquisas com meninos de 10 a 15 anos em ambientes escolares nos EUA, quanto Sousa e Altmann9 em suas investigações em espaços escolares no Brasil, indicam a estreita relação que estas crianças faziam da dança e o universo feminino, designando dança como “aula de menina”. O fato é que em função destes contextos decidi esquecer o assunto e somente muitos anos mais tarde, com 26 anos, tive a coragem de questionar e redimensionar esse preceito e comecei a fazer aulas de dança. Optei por um estilo diferente do ballet, pois novas possibilidades estavam disponíveis.

Nesse meio tempo segui por outro viés que me reporta ao prazer de infância, o contato com árvores e com a água, que me conduziram a uma graduação em engenharia de florestas pela Universidade de Brasília, em 1987.

Lá trabalhei como monitor das disciplinas Dendrologia e Parques e Jardins, por sucessivos semestres, sendo orientado pelo professor José Wagner Machado. Também participei da pesquisa sobre crescimento e fenologia de espécies arbóreas na mata do Capetinga, localizada em Brasília, sob orientação de Jeanine Maria Felfili.

Esses estudos foram essenciais para apurar a minha percepção sobre formas, distribuição espacial e identificação de particularidades relevantes em materiais observados. Pois, em estudos de fenologia, usamos uma série de características vegetativas inerentes a cada espécie (casca, folhas, entre outras), como estratégia de identificação. Habilidades essas que foram imprescindíveis em meus posteriores estudos de dança.

Lembro-me das longas caminhadas pelo cerrado, por matas de galeria e pequenos córregos de água. Sentia-me extremamente energizado após esses percursos. Uma poderosa torrente de sensações ficava a girar em mim, mas sem foz para desaguar. Isso gerou um processo de insatisfação profundo.

Para o entendimento dessa questão, a partir de 1987 iniciei um trabalho terapêutico baseado no sistema denominado biodança e em sessões de análise transacional. O que representou o despertar da minha opção pelo movimento e pela dança enquanto propósito de vida.

A psicodança, posteriormente designada biodança, foi criada pelo chileno Rolando Toro na década de 60 do século passado, disseminando-se por diferentes partes do Brasil, principalmente no final dos anos 70; e chegando a Brasília na década de 80.

Utilizando-se de fundamentos da biologia, Antropologia e da Psicologia, a biodançaé definida oficialmente como um “sistema de integração afetiva, de renovação orgânica e de re-aprendizagem das funções originais da vida”10.

Sua base metodológica é ancorada no conceito de vivência, que para Toro “é a experiência vivida com grande intensidade por um indivíduo no momento presente, que envolve a cenestesia, as funções viscerais e emocionais”11. A vivência também  confere à experiência subjetiva “a palpitante qualidade existencial de viver o aqui e agora”12.

Assim, a metodologia da biodança investe na “indução de vivências integradoras”13, pois estas implicam em uma imediata conexão do indivíduo consigo mesmo. Esse processo se dá por meio de exercícios específicos realizados com estímulos provenientes da música, do canto, do movimento e de situações de encontro em grupos. No que diz respeito às composições musicais empregadas, são estudados os seus conteúdos emocionais com a finalidade de avaliar os efeitos orgânicos e o tipo de vivência que evocam.

As vivências na biodança são organizadas segundo o princípio “biocêntrico”14 e envolvem cinco grandes grupos da experiência humana: vitalidade, sexualidade, criatividade, afetividade e transcendência; sendo que cada uma dessas linhas vivenciais tem uma combinação de qualidades de movimentos que lhes é própria.

Além da Biodança, Toro desenvolveu, também, o Projeto Minotauro, uma abordagem terapêutica para o des-cobrimento da própria identidade; sendo que o termo identidade é tomado como “uma expressão de nossa singularidade biológica”15. Em sua proposta metodológica são enfatizadas as vivências relacionadas à dita “árvore dos medos”16,  uma metáfora da vasta rede de medos humanos. Aqui uma série de desafios inerentes ao processo de amadurecimento são experienciados num formato ritualístico. A intenção é assumir e integrar o aspecto selvagem e instintivo simbolizado pelo minotauro, a criatura com corpo humano e cabeça de touro, que, segundo essa perspectiva, existe no “ser” como força primordial da vida.

Durante seis anos consecutivos participei das  propostas vivenciais da biodança e, por um ano, do desenvolvimento das atividades referentes ao projeto Minotauro, sob a condução da psicoterapeuta Tereza Gayoso.

A reverberação desses trabalhos corporais foi imensa. Tinha encontrado um modo eficiente para lidar com conteúdos internos de base e re-significá-los pelo movimento.

No entanto outras necessidades desabrocharam. Os famosos “e se” começaram a jorrar aos borbotões. Novos modos de ser/existir/sentir/agir emergiram como possibilidades e o movimento tomou posição central como caminho de investigação.

Aqui retorna o desejo de dançar da infância. Mas uma dança sem tantos códigos formais pré-definidos como o ballet; e sim uma onde eu pudesse des-cobrir o meu dançar.

Encontrei o lugar certo para mim, curiosamente por meio de um anúncio no jornal Correio Braziliense, no segundo semestre de 1990. Era um salão no subsolo de uma casa, onde no térreo funcionava uma fábrica de biscoitos. Assim, em meio ao cheiro de coco, goiaba e banana e estimulado por músicas que eu até então desconhecia, comecei a participar de aulas de corpo e movimento com Lenora Lobo.

No início fazia duas aulas por semana. Já no início de 1991 passei a desfrutar de três aulas por semana, que eram realizadas no recém inaugurado Studio de dança de Lenora, montado em uma sobreloja na asa sul. Lá, já no final de 1991, Lenora me propôs ingressar na Cia Alaya dança, segundo um modelo de “troca”.  Assim, de um lado eu integraria o processo de formação com a Cia, por meio de aulas prático/reflexivas diárias. Como contrapartida, eu participaria das pesquisas de movimento para as elaborações coreográficas levadas a cabo por Lenora. Nesse sistema acabei ganhando duplamente. Obrigado Lenora.

Naquele momento não pensava em participar de apresentações de composições de dança, mas como era o único modo de fruir de mais aulas por semana, aceitei.

Aliás, costumo dizer que fui definitivamente fisgado pela dança, por meio dessas aulas.

Mas o que de tão precioso existe nessas aulas?

A vivência de meios eficientes de investigação, re-conhecimento, re-organização, re-criação de mim mesmo pelo movimento consciente, parece ser a resposta mais apropriada. Isso envolve a re-des-coberta de como eu me estruturo corporal-mente. Quais, onde, como e algumas vezes por que eu utilizo determinados pontos de apoio/força/compensação para me movimentar e dançar; bems reverberações dessas re-velações em mim. Aqui o “eu” é entendido sempre como uma unidade complexa e multifacetada, ou seja, eu sou o corpo que deseja, se move, pensa, vive, ama, se expressa, dança.

Mais do que formas pré-estabelecidas em que se deseja chegar, o caminho do movimento/energia passa a ser o ponto chave; mesmo porque a atenção no caminho abre o campo das possibilidades de se chegar a outros terrenos ainda desconhecidos, des-cortinando outras paisagens sensoriais/perceptivas/emocionais/mentais e re-configurando o meu “modus operandi” de estar no mundo.

Embora as aulas tivessem uma estrutura comum ancorada nos pressupostos da dança educativa moderna (aquecimento seguido de exploração/desenvolvimento/organização, performance e apreciação), os temas e conteúdos  enveredavam por camadas mais profundas da percepção, do movimento, da dança.

Foi nesse contexto que eu fui elaborando a minha “identidade” dançante básica.

Por outro lado, a participação nos processos de pesquisas coreográficas e as vivências inerentes tanto à feitura, quanto às apresentações de composições de dança em ambientes de teatros e galerias, dilatavam e re-organizavam o meu modo de dançar.