Jorge Du Pan

Jorge Du Pan
15 de abril de 2019 alayadanca

Ensaio – Arte do Teatro do Movimento

Raízes

Era domingo à noite, 5 de agosto de 1973.  Eu e minha família estávamos em frente à TV para ver a estreia de um novo telejornal. Na tela, surgiram duas crianças correndo e desvelando grupos de pessoas fantasiadas de pierrôs e colombinas que iam para o meio do palco em giros até começarem a dançar. Tanto os bailarinos quanto a letra da música me encantaram.

Olhe bem, preste atenção,
Nada na mão, nesta também
Nós temos mágicas para fazer
Assim a vida ali pra ver…
Milhares de sonhos
Só para sonhar
Miragens que não se pode contar…
Numa fração
De um segundo
Qualquer emoção
Agita o mundo
Riso, criado por quem é mestre
Sexo, sem ele o mundo não cresce
Guerra, pra matar e morrer
Amor, que ensina a viver
Nãnãnã… Nãnãnã… Nãnãnã…
Foguete no espaço
Rumo ao infinito
Provando que tudo
Não passa de um mito

(Estribilho – 5x)
É Fantástico
Da idade da pedra
Ao homem de plástico
O Show da Vida
É FANTÁSTICO!!!

Então eu me levantei gritando para todos na sala: “Eu quero ser bailarino!”. Meu pai me olhou e disse: “Ai, meu Deus!”. A partir daquele dia eu só queria aprender aquela coreografia e aquela música. Em outro domingo, o mesmo programa trouxe grupo chamado Secos e Molhados. Eram quatro caras com o rosto pintado em preto e branco, dançando e cantando. Eu o Brasil nos encantamos com eles.  Mas tudo o que eu queria era aprender aquela dança. Em todas as festinhas eu era a principal atração, dançando todas as coreografias daquele grupo de caras pintadas. Eu tinha 6 ou 7 anos de idade e o que eu mais queria era cantar e dançar.

Vieram então os musicais da Broadway: Dançando na Chuva, Quanto mais Quente Melhor e estrelas como Charles Chaplin, Carmen Miranda, Rita Hayworth, Ginger Rogers, Fred e Astaire e outros mais.

Aos 13 anos, eu vejo uma novela chamada Baila Comigo, cuja trama centrava-se em uma academia de dança. A partir daí surgiram academias em cada esquina de Brasília, apesar de Brasília não ter esquinas.

Aos 15 anos fui convidado para fazer um teste de bailarino. Eu já sabia fazer sparcat e era atrevido como ainda hoje sou. Passei e fui escondido fazer aulas de dança. Quando minha mãe descobriu, ficou chocada, mas comprou uma malha para eu fazer aula. Meu pai nem sonhava….

Aos 17 eu já dava aula em duas academias. Em 1984 eu fui fazer outro teste de bailarino na Academia Lúcia Toller. Foi quando meu pai ficou sabendo. Não falou nem sim, nem não. Mas me dava o dinheiro para eu ir para as aulas. Quando ele viu a minha mãe se arrumando para me ver dançar na sala Villa-Lobos, perguntou: “Ele é bom mesmo?”. E ela respondeu com um sinal afirmativo.

Em 1986 eu já estava dando aula em quatro academias de jazz. Foi quando um amigo, Alex Coelho, me falou que iria ter um teste para um grupo de dança no Centro de Criatividade hoje, Espaço Cultural 508 Renato Russo. E lá fui eu fazer o teste. Tan tan ran… passei novamente.

O grupo era ministrado por duas bailarinas: Eliana Carneiro e Maura Baiochi. Foi ali que eu descobri e me apaixonei pela dança contemporânea. Era um grupo de 10 homens e 10 mulheres sedentos por mostrar suas experiências em teatro, dança e música. Andreia e Fernanda Japiaçu, Miquéias Paz, Simone Reis, João Paulo, Beneto, Fabíola, Paulo, Felícia Carneiro, Zé Regino, Igreja, e outros.

Montamos um espetáculo, que se chamava O Imprevisível – Previsão do Tempo, onde dançávamos em trios, duos, solo ou o grupo todo. Foi o meu primeiro solo com tules amarelos, vermelhos, brancos, verdes e azuis, onde eu soltava sons, brincando com as cores e com as palavras das cores. Amar Elo. Tules Verme. Ver me. E assim por diante…

Fizemos Escola Parque, o extinto Teatro Garagem, Teatro da Praça e Jogo de Cena, no Galpãozinho.  Logo depois fomos ver Kazuo Ohno dançar. Uma dança lânguida, lenta, linda e inteira. No outro dia, era despedida de Maura e Eliana, que iam para o Japão acompanhando Kazuo Ohno, e eu fiz a minha primeira performance na festa de despedida, imitando Kazuo Ohno. Até esse dia eu nem sabia o que era performance.

Maura e Eliana foram para o Japão. Quando voltaram, o grupo foi desfeito. Fiquei muito triste, mas elas nos apresentaram uma bailarina que acabara de chegar de Londres e iria dar um curso. Foi até o grupo para dar uma aula. Eu queria muito fazer aula com ela. Essa bailarina era linda. Tinha o cabelo todo espetado, vermelho e amarelo e olhava nos olhos da gente. Ela me ganhou quando foi me corrigir um ponto no corpo e me tocou com aquela voz macia e que falava, olhava e tocava na gente. O nome dela era Lenora Lobo. Fui fazer sua oficina. Aprendi sobre os pés, joelhos, tronco, em cima, em baixo, um lado, outro, frente, trás, giros que não era só dar piruetas, levantar e cair. Me inscrevi para a mostra de artistas plásticos do Centro Oeste com a performance Tulhes. A partir daí comecei a trabalhar na linha que Lenora oferecia, ligada Rudolf Laban. E coreografei Tulhes. Minha irmã, Tata, fez a poesia.

Arte eterna é ter na palavra
Li, vi, escrevi
Na palavra
Na pá lavra
Na vida
No verme
No ver me
No amarte de
Verde é vida

Mais uma vez passei no projeto e fui convidado para me apresentar na feira do livro.

A dança em mim

Andando pela grama de olhos fechados, procurando sentir a minha dança interior. As sensações eram múltiplas, mas faltava algo. Então tirei o calçado e olhei para os lados. Tudo continuava do mesmo jeito. Os carros passando e eu ali me perguntando: “Cadê a sensação que, por alguns segundos, eu acabara de sentir? Para onde ela foi?” Tentei mais uma vez, agora descalço, esperando aquele “insight”.

Fechei os olhos e comecei a andar sentindo a grama tocando nos meus pés. De repente, sinto um pingo… e outro. E quase me perdi de novo. Então abri os olhos e vi o tempo fechando. Aquele sapato velho, a cidade à minha volta, colorida de pessoas e movimentos. Tudo à minha volta dança. “Cadê você, minha dança?” Perguntava no meu inconsciente.

Fechei os olhos. As gotas da chuva caiam e então, passos e braços, cotovelos e joelhos, cabeças e risos. E a chuva caindo. De repente um carro buzina. Um casal grita: “Lindo! Dance mais!”. E ali estava eu festejando. O cuspe do céu molhando meu corpo como se fosse uma planta que não vive sem o heliotropismo.  Num impulso, pulava, chorava e ria. Não sou louco, sou arte, sou dança. Sou vivo e viva a vida me deu este presente. Onde vou eu? E já era tão pouco, mas já era demais. Rir, chorar, dançar na chuva. É tanta água de chuva nas calçadas, meu sapato velho ali atrás das plantas. Pessoas e carros e eu ali dançando na grama.

Penso eu: não sou um objeto, sou arte. Meu ego, enfim, estava inflado. Molhado de prazer. Oh indefinível criatura, você é a dança! Falava a minha alma para o meu corpo. Suspiros e líquidos me levavam ao movimento. Este é o meu rio correndo. Eu sou um peixe. Eu sou um mar. Meus braços eram tentáculos que lançavam prazer em ver à minha volta. O tempo passa e eu vou descobrindo este sentimento penetrando e temperando os meus movimentos.  Nele, eu submerjo. Meus poros exalam a dança. Obrigado meu pai, obrigado minha mãe por me darem a chance de viver. Rolando pelo chão molhado me sentia um animal primitivo dançando, rindo, chorando e me consolando. Perdi o meu pai, mas ele está dentro de mim, comigo. Eu sou parte dele. Então é isso… Eu sou a dança, a dança está dentro de mim. Meus olhos molhados me levam a ver agora sentimentos mais fortes. Um frio na barriga me faz correr, bater os pés na poça d´água. Pulo, grito, choro e rio. Pausa. Penso, escuto. Estou descobrindo como expressar em letras os meus sentimentos.

Eu, minha interioridade

Músculos cobrindo ossos, pele cobrindo músculos, audição, tato, visão, paladar e olfato. É fato que, de um milhão, 2% da humanidade terão algum distúrbio qualquer. Mas isso não vem ao caso. Tenho que falar para você o que eu sinto na minha interioridade, no meu dia-a-dia. Tem dias que acordo, espreguiço, levanto, tomo minha água, ando pela casa e procuro uma atividade. Eu sempre gostei muito de desafiar a minha capacidade de criar. Entro na cozinha, pego farinha, sal, açúcar, água, fermento, manteiga, misturo e transformo em uma só unidade. Em uma massa que pode ser temperada com frutas, frios, legumes, ervas e condimentos ou só a massa. Esta vai crescer e transformar-se em pães. Rego meu jardim, podo minhas plantas, faço mudas, adubo-as para fertilizá-las e favorecer o seu desenvolvimento. Repagino revistas e encontro um molde de boneca de pano e me proponho a um duelo com tecidos, linhas, agulhas, máquina de costura e realizo-me ao vencer um combate. Novamente me encontro transformando e criando novas formas que me excitam todos os sentidos.

Outro dia, acordo me perguntando o que vou fazer e fico na cama vendo TV, refletindo a minha vida e o que tudo isso significa. Com o olhar longínquo, fico horas a imaginar uma coisa ou outra; na minha casa, nos meus amigos e me pego a andar de um lado para o outro, em um parafraseado de movimentos e sentimentos. Corro para o telefone. Extremamente conveniente para aliviar aquela angústia que se instalava no meu peito. Com o meu interior, caminho e vejo o mundo em movimento, com um sentimento de um universo paralelo de seres coletivos e únicos. Fico feliz como um mineiro quando descobre um veio aurífero que tem que explorar até a última pepita. Foi assim que eu me senti quando me deparei com o método “Teatro do Movimento”, com a ideia da ação física por inteiro. Poderia ir além, tocar no infinito, estava acesa a luz da criatividade. Eu poderia ser quem eu quisesse, dispor as ideias e trabalhá-las com discernimento. Com o tempo, espaço dinâmica, nível e ritmo poderia montar uma frase coreográfica. Como se fosse fazer um pão, regar as plantas ou fazer uma boneca de pano.  Dançar é um desafio diário.

Penso o que seria se eu não vivenciasse a dança e a performance. O meu eu seria do mesmo jeito, meu pés seriam tensos, sem apoio, sem expressão e a minhas mãos estariam tão envolvidas a dar vida a pães, plantas, pinturas e formas e movimentos ao corpo? A minha postura, o meu andar, o meu sentar, o meu parar seriam os mesmos?  Certamente não!

Sou uma pedra, um boneco de ossos, músculos cobertos de pele e panos a procurar o meu espaço, o meu movimento, a minha dança. Celebro o cérebro que me dá a estrutura do movimento e brinco com o meu imaginário. E assim torna-se perceptível, dentro do Triângulo da Composição, o cruzamento das retas unindo o corpo cênico, o movimento estruturado e o imaginário criativo.

GIL, José. Movimento Total: O Corpo e a Dança. Lisboa: Relógio D’Água, 2001.

LOBO, Lenora Arte da Composição – Teatro do Movimento. Editora LGE, 2008.

Como o Método me transformou

Eu lembro que eu tinha a caixa torácica um pouco estufada, o chamado “peito de pombo”, e os dedos dos pés encolhidos. Os exercícios foram dando forma a essa caixa torácica. Exemplo: pés paralelos, braços para baixo, peito para frente, coluna frente abrindo o externo, cabeça olhando para o teto. A cabeça vem abaixando com o peso do queixo e fechando o externo e lembrando que os pés, pernas, bacia estão ali também presentes sendo trabalhados.

“Assim, num simples exercício de deixar cair cabeça e tronco para frente, experimentamos o que chamo de transferência de pontos de apoio do eixo central.”

Teatro do Movimento Um método para o intérprete criador, Lenora Lobo e Cássia Navas, 3º parágrafo, pág. 64.

Ah, os meus pés! Sempre com auxílio de Lenora, ali no comando dos exercícios, batendo o seu pandeirinho e comandando a aula. “Vamos lá! Todos para o centro da sala.” Batendo os pés no chão, trabalhando a planta dos pés. Ok, agora vamos trabalhar as bordas internas dos pés, passando para a meia ponta, depois o calcanhar e agora a borda externa. Ok, ok, parou! Pés paralelos, abrindo os dedos dos pés e fechando, como se fosse pegar um lápis. Agora abrindo e espalmando os dedos no chão. Vai lá, Jorge! Enraiza esses dedos! Entrega para a terra. E ali ela me deu a imagem que eu precisava para trabalhar o meu eixo como um bambu.

“Diferentes distribuições de peso nos quatro apoios da planta do pé: metatarso, calcanhar, borda externa e interna, trazem posturas e tipos totalmente diversos de pessoas. Nosso peso, que deveria se apoiar no centro dos pés e ser distribuído por toda a planta, quando prioriza um destes quatro apoios, produz na postura outros pontos de tensão que, neste caso, servem de compensação na eterna busca do equilíbrio.”

Teatro do Movimento Um método para o intérprete criador, Lenora Lobo e Cássia Navas, 2º parágrafo, pág. 65

Foi determinante todo esse amparo de Lenora e os seus ensinamentos na diagonal: correndo, girando, saltando, trabalhando o equilíbrio e o desequilíbrio, o abrir e o fechar de braços de pernas, as máscaras faciais, as quedas… sem falar nos exercícios de barra e centro da sala e chão. Nunca me esqueci de que um dia, no fim da aula, Lenora pede para todos deitarem no chão e relaxarem. Eu estava tenso, me deitei e ela veio até mim e disse: “pense em uma galinha bem cozida, com as carnes soltando os ossos”.  E eu pensei em uma galinha na panela de pressão bem temperada com cebola, tomate, alho, pimentões e a carne se soltando dos ossos. E aí eu relaxei e ela disse: “é isso aí, Jorge”!

A quantidade de improvisações, de laboratórios, pesquisas que eu vivenciei e vi o meu corpo se transformando e a minha cabeça junto. Aí comecei a fazer o pão, a vender o pão, comecei a dançar e a me apresentar. Anos depois, a ser um assistente de direção. E como tudo isso foi transformando meu eu, essa massa física. E me ajudando a evoluir para a performance.

E os meus movimentos eram mais diretos e exagerados e quebrados. E as articulações eram pequenas. Com os exercícios fui ganhando espaço e aumentando a projeção das articulações interna e externa com mais intensidade e flexibilidade nos movimentos. E que me ajudou na minha comunicação de intérprete criador.

As tarefas evolutivas executadas fizeram e ainda fazem parte de um processo dinâmico que me leva a inúmeros recursos que eu possa atingir uma estabilidade íntima, que me assegure a clareza, a sensibilidade e a serenidade física e mental, elementos imprescindíveis para um intérprete criador na estrutura organizada do teatro do movimento.

O triângulo

O Imaginário Criativo

Meu processo de criação para a performance vem muito pelo figurino. A busca pelo concreto. Com isso, quando seleciono um determinado comportamento cujo resultado é possível prever, estou também escolhendo esse mesmo resultado por afinidade. Um levantamento de questões de vivências circunstanciais. Afetos, afeições, memórias, um cheiro, uma música, relativos à construção do personagem, da sua estrutura. Eu consigo me distanciar do personagem.

“A experiência ocorre continuamente porque a interação do ser vivo com as condições ambientais está envolvida no próprio processo de viver. Nas situações de resistências e conflitos, os aspectos e elementos do eu e do mundo implicado nessa interação modificam a experiência com emoções e ideias, de modo que emerge a intenção consciente.”

John Dewey, A Arte como Experiência, pág. 109

O que dançar? Eis a pergunta primordial que dá início aos nossos percursos. Que estímulos, sensações, ideias ou temas nos impulsionam para a criação? Escolhemos nossos estímulos ou somos escolhidos por eles, comum clarão de um insight?

No meio de tanta complexidade tenho certeza de que cada coreógrafo é único no seu processo individual e intransferível e que ele desenvolve um sistema peculiar à sua própria natureza em relação com seu espaço externo, sua cultura.

Consciente ou não, o que cada criador escolhe conecta-se com o que quer expressar e compartilhar com o mundo. Um processo alquímico entre o ser humano, seu meio e os mais profundos desejos.” (Lenora Lobo e Cássia Navas, A Arte da Composição Teatro em Movimento, pág. 108)

O Corpo Cênico

Como construir um personagem dentro de um corpo cênico? Acender a sensibilidade, a importância de uma abordagem do corpo, suas partes, como desafios para o processo de construção do personagem. Ou seja, atender suas articulações, apoios, coluna vertebral, planta dos pés, etc. Intenções e máscaras faciais. Pensar nas habilidades. Como as habilidades corporais executam os movimentos.

“O homem deriva os meios pelos quais respira, movimenta-se, vê e ouve, é o próprio cérebro com o que coordena seus sentidos e os seus movimentos de seus antepassados animais. Os órgãos com que ele se mantém vivo não são apenas dele, mas provém das lutas e conquistas de uma longa linhagem de ancestrais do mundo animal”.

John Dewey, A Arte como Experiência, pág. 74, 1º parágrafo

“O corpo cênico proposto é o trabalho corporal do artista do movimento que o mantém sempre hábil e apto ao ato de criar e expressar e repetir com intenções o movimento concebido. A recepção ou representação do criativo deve estar imbuída da apropriação das qualidades inerentes às sensações e ideias manifestadas para que a recepção não se torne mera forma vazia mas um transbordamento, uma recriação, uma reinvenção”.

Lenora Lobo e Cássia Navas, A Arte da Composição Teatro em Movimento, pág. 34

Concluindo, se o corpo não estiver preparado para a cena o ator não estará apto para encenar por mais carisma que ele tenha. Carisma, a meu ver, é inerente, porém não é técnica. Mas com técnica é possível melhorar o carisma.

“Em suma, procurando dançar a gramática o bailarino visa esse “ponto de fusão” que solda os gestos e o sentido num único plano de imanência. A dança constrói o plano de movimento onde o “espírito e o corpo são um só” porque o movimento do sentido desposa o próprio sentido do movimento: dançar é não “significar”, “simbolizar” ou “indicar” significações ou coisas, mas trançar o movimento graças ao qual todos estes sentidos nascem. No movimento dança o sentido torna-se ação.”

O Corpo Paradoxal, José Gil, pág. 78, 1º parágrafo

O Movimento Estruturado

Como eu uso, através da construção do meu corpo cênico, do meu movimento estruturado, o espaço, o apoio, os níveis, as ações, as realizações, os relacionamentos utilizados de forma coerente estes comportamentos estruturais? Além do elemento de cena, figurino, o campo de pesquisa, como eu coloco isso dentro dessa linguagem performática?

Eu vou falar de dois personagens estruturados com opostos. Mourena Moorel (dita com sotaque americanizado).

Marylin Monroe.  Quando a gente fala dessa mulher e símbolo sexual, logo nos lembramos da antológica saia voando do filme Quanto mais Quente Melhor. Ou do Parabéns pra Você para o presidente John Kennedy que, diga-se de passagem, o vestido dela foi vendido atualmente por 4,5 milhões de dólares. É um desafio e tanto para um homem, negro, fazer uma Marylin, mas o legal é o desafio, a coragem. Aliás, a palavra coragem vem da raiz latina cor, cordis, que significa coração “sede ou centro da alma, da inteligência e da sensibilidade” . Ela sempre foi uma pessoa corajosa, embora frágil.

O processo de pesquisa foi através de sua história de vida. Para a construção corporal da personagem como ela caminha, para, senta, gesticula, fuma. E lá estava eu, vendo filmes, fotos, livros, para ficar mais íntimo do mito. Seu caminhar era motivo de parar o trânsito. Ela mandava todos os seus sapatos esquerdos para um sapateiro que tirava um milímetro do salto para que quando ela caminhasse, o seu requebrado ficasse mais evidente, trabalhando o quadril, o metatarso e o jogo de bacia.

Sua máscara facial, que eu trabalhei bastante olhando muito para o espelho,  neste ponto o olhar, a boca entreaberta, a expressão facial. Esse seu olhar sedutor, a coluna com o externo para frente, trabalhando também a sensualidade e mostrando os seios. A cabeça com o queixo um pouco para o alto e o olhar para baixo e o pescoço um pouco inclinado para o lado, trabalhando com a coluna e desenvolvendo uma linha para as suas curvas. Uns dois dias antes de eu me apresentar, minha mãe, minha irmã e minha prima estavam montando o famoso vestido branco e elas me chamaram para eu ver como estava o godê (a circunferência da saia de 360º).

E lá estava eu vestido de mulher, em cima da mesa e meu pai passou pela sala de jantar e falou para a minha mãe: quem é essa mulher oferecida que está em cima da minha mesa de jantar?  Ali eu vi que eu estava pronto. Já havia me apropriado dos seus movimentos, de suas intenções. Meu corpo cênico como intérprete já estava mapeado e estruturado com a coreografia dos seus gestos e expressões. Happy Birthday to you… É claro que a maquiagem ajudou muito, mas o corpo estava estruturado para esse personagem.

Quando chegou o dia que eu tive que ir para o Cine Brasília no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, fui atacado por uma legião de flashes. Saber usar o espaço possibilitando sua forma com o coletivo foi me deixando mais íntimo com o seu material de criação. Eu já não era mais o Jorge Dupan e sim Mourena Moorel. Eu queria fumar um cigarro. Quando eu tirei a piteira e o cigarro da bolsa tinha quatro isqueiros acendendo meu cigarro. Eu era simplesmente Marylin.

O corpo é a fonte da expressão de onde brota a arte do movimento, o teatro e a dança. É a própria expressão, o artista em sim, preparado para a cena e para a incorporação de sua arte.

  1. Intenção: é uma atitude interior que corporifica um propósito, um intento, atuando na maneira como o movimento ocorre e, consequentemente, no tônus, na quantidade e expressão. Perceber a intenção interior do gesto, depois sua qualidade e em seguida o tônus traz ao ator e ao bailarino possibilidades de criar sua intenção corporal, além de capacitá-lo para a sua repetição, sem necessariamente ter que vivenciar a emoção ou a motivação.
  2. Expressividade das partes do corpo e do todo: com a percepção do todo aguçada, divide-se o corpo em partes para realizar uma grande investigação expressiva. Cada parte do corpo traz à tona o desenvolvimento de imagens, informações e signos que paulatinamente se transformam em vocabulário. A partir daí, são explorados movimentos do corpo como um todo e de uma de suas partes, de duas ou mais partes ao mesmo tempo, estabelecendo-se diálogos entre partes e entre intenções contrárias das mesmas.
    1. Máscara facial: estudos da máscara facial e suas relações de harmonia e dicotomia com o corpo. A máscara pode ser neutra, simétrica e assimétrica, estreita e larga, curta e comprida, fechada e aberta, extrovertida e introvertida.
    2. Relações da máscara com o corpo: dependendo do trabalho, a máscara e o corpo podem estar em harmonia, ter a mesma intenção ou estar em dicotomia, posto terem intenções contrárias entre si.
  3. Corporificação das emoções: cada corpo que sente a emoção pode expressá-la de maneiras diferentes mantendo-se, todavia, a qualidade corporal que nos faz identificar esta ou aquela emoção no movimento específico de cada um. Abaixo, seguem os procedimentos relativos a este trabalho.
    Práticas de aquecimento e preparação como esvaziamento;
    Estímulos à memória afetiva para trazer à tona as emoções;
    Vivenciando a emoção, observando, sentindo e analisando suas qualidades;
    Corporificando a emoção e repetindo-a com a intenção.
  4. Construção corporal de personagens: construção de personagens a partir do corpo em trabalhos com:
    1. Estímulos externos: referências externas como textos, imagens, pesquisa de campo, observação de outros personagens, sons, músicas, cantigas ou palavras, entre outros.
    2. Estímulos internos: referências internas como arquétipos pessoais, sensações corporais, imagens e imaginação concretizadas a partir do caminhar ou outro movimento oriundo de alguma parte do corpo ou de sons originados no próprio corpo.” (Lenora Lobo e Cássia Navas, A Arte da Composição Teatro em Movimento, págs. 36 e 39)

No outro dia, eu fui para o festival vestido de mendiga com os pés com feridas, dentes pintados de preto e uma vassoura de bruxa. E com uma corcunda. E fui barrado na entrada. Tive que sair do personagem e mostrar a minha credencial para entrar no festival. Como ela tinha o caminhar em falso e manco na perna direita por conta das feridas usava uma vassoura como apoio para sustentar os pés, as pernas e o arqueado da coluna.  E com um copinho na mão pedia esmola para as pessoas que quase sempre no primeiro instante tinham medo e repulsa daquela pessoa horrenda. “Quando estamos envolvidos pelo temor não conseguimos avançar”. Aquela criatura conseguia, nem que fosse por um milésimo de segundo, causar um tipo de fobia social nas pessoas.

“No processo de converter esses obstáculos e condições neutras em agentes favorecedores, a criatura viva ganha consistência da intenção implícita de sua impulsão. O eu quer tenha êxito, quer falhe, não faz apenas restabelecer-se em seu estado anterior. O impacto cego é transformado em um propósito; as tendências instintivas convertem-se em empenhos planejados. As atitudes do eu são interpretadas de sentido.”

John Dewey, A Arte como Experiência, pág. 45

DNA – Dança na alma

“Ora, o narcisismo do bailarino não convoca apenas o olhar. É verdade que se “vê” dançar, mas também que se “ouve” e, mais profundamente, que se “sente” dançar (porque se “toca” ou porque “experimenta” o movimento: a reflexividade do corpo é geral).” Não há imagem visual ou cinestésica única do corpo dançante: mas uma multiplicidade de imagens virtuais que o movimento produz e que marcam outros tantos pontos de contemplação a partir dos quais o corpo se percebe.

O bailarino contempla as imagens virtuais do seu corpo a partir dos múltiplos pontos de vista do espaço do corpo. Paradoxalmente, a posição narcísica do bailarino não exige um “eu”, mas outro corpo (pelo menos) que se desprende do corpo visível e dança com ele.

“Graças ao espaço do corpo, o bailarino, enquanto dança cria duplos ou múltiplos virtuais do seu corpo que garantem um ponto de vista estável sobre o movimento”

(para Mary Wigman, dançar é produzir um duplo com o qual o bailarino dialoga). O Corpo Paradoxal, José Gil, pág. 51, 1º e 3º parágrafos

Espelhos d’água lágrimas da alma, mentes com reflexos. Fazer, montar, mostrar faz parte de mim. Eu sou, eu posso, eu tenho e guardo em linhas que encaixam e me estimulam em jogos de movimentos. Jardim dos prazeres, boneco de carne. O pão, o sal, a sombra, o sabor, a saliva, o solo, o cio, o sol. As linhas que se cruzam. Me fala a verdade, Narciso! Foi quando eu acordei e senti aquela fisgada. Com a perseguição que ali naquele momento de sonho era uma nova realidade. Eu sou o DNA – Dança na Alma do pai, da mãe e do filho. Líquido da dança. Um leque de variedades. Então, mão na massa do pão era a minha matéria, meu produto, minha herança de família. Da mesma forma eu poderia estimular mão na massa da performance e daí veio a “pãoformance”.

O criativo me levou a um afluente. Estava tudo ali. A sensação, a visão, tudo vem. O pão, a dança, a linha, a curva, a música que escuto, o que como, tudo o que olho e percebo faz conexão com a criação. E aí vem a dificuldade: quando eu falo, eu penso mais do que eu sinto. Mas eu sinto mais do que eu penso? Lá vem o virginiano atormentar o meu raciocínio… O conhecimento sensível que vem através do conhecimento de vida. A arte de se conhecer como a intuição é uma forma de conhecimento só que ela não é medida pela ciência como o intelecto, a razão, o 1+1=2.

Mas hoje já se sabe que o conhecimento sensível é sentido. Tudo isso é conhecimento sentido e sensível. Tudo faz conexão: a massa do pão, a massa física. Então posso construir a dança como se fosse um pão. Dosado e ousado nas medidas dos ingredientes. E tudo isso de forma orgânica do meu ser. Esperando entre linhas de paginações me encontrarem com as ideias que me encaixam nas minhas gavetas de lógicas e loucuras. Instalo a minha cômoda e uma caixinha de memórias ou um bibelô para a minha sobrinha neta que acabara de nascer enquanto eu escrevia essas linhas.

Obrigado DNA, pão da vida, que floresce e dispõe a dança do paralelo, da linha do imaginário, da trindade da lógica de criar e elaborar e lembrar das gavetas da memória, do movimento das árvores, da sensação de ter uma ideia de coreografá-la, ensaiá-la e apresentá-la.  É indescritível, frio na barriga, alegria de estar mostrando seu trabalho. Medo das críticas. Tudo ao mesmo tempo. Toca a campainha e lá estamos nós no palco. Todos ali te vendo. Nada pode dar errado. Novamente toca a campainha. A luz da plateia se apaga, a cortina se abre e se acende a luz do palco. É comum parto. Aquela ideia agora  é realidade não só para mim ou para o grupo. É real para todos que estão ali te vendo. Demonstrar a satisfação em movimentos.

Uma desfiguração do imaginário para o real expondo uma provocação organizada de movimentos melodiosos e quebrados que vai promover uma colocação de esforço e atenção, de acreditar no sentimento e de poder captar da plateia e mostrar para ela o que está sendo captado. Já não sou mais um afluente. Sou um grande rio. Sou o coletivo. A obra encontra o público. É como o rio que encontra o mar. Já não sou mais um sentimento. O meu umbigo, meu pão, minha arte agora é de todos que estão me vendo. Pensar no público faz parte do processo de criação.