João Negreiros

João Negreiros
15 de abril de 2019 alayadanca

Dança e teatro no percurso de um intérprete criador

Introdução

O presente trabalho é fruto de pesquisa realizada junto ao Núcleo de Pesquisas da Cia Alaya Dança, ao longo de quase 20 anos. Aponta questões influenciadas pela metodologia do Teatro do Movimento, método sistematizado pela diretora, coreógrafa e professora Lenora Lobo, consolidado em 2003 no livro Teatro do Movimento – Um método para o Intérprete Criador, em parceria com Cássia Navas, doutora em dança pela PUC-SP.

Minha mola propulsora iniciou na década de 1980 na vertente teatral, por meio da qual tive o privilégio de conhecer vários teatrólogos e diretores no curso de bacharelado em Artes Cênica, na Faculdade Dulcina de Moraes, em Brasília. Foi na efervescência daquele momento cultural da cidade que iniciei minha investigação, descobrindo e redescobrindo vários diretores, autores e outros grandes talentos das artes teatrais. Tive a chance de conhecer suas técnicas e formas de colocar o corpo-palavra em ação. Foi através do uso da palavra que tive a percepção de querer ir além do texto, pois tudo pulsava: todos os meus órgãos, todas as minhas vísceras. Estava sedento, querendo explicitar e transmutar além da palavra, pois eu queria aprofundar ainda mais, de forma mais autêntica, genuína e com mais conteúdo.

No início dos anos 1990, tive, então, o privilégio de conhecer Lenora Lobo e sua metodologia, ingressando na Cia Alaya Dança onde me contatei com a Arte do Movimento, em 1992, participando de várias produções, conhecendo diversas pessoas e, consequentemente outros corpos bem heterogêneos.

E eu? Também heterogêneo, tinha fome de “comer outras iguarias”. Deleuze disse que “somos oscilações e seres ondulatórios” . E foi oscilando por todos os experimentos, vivências, laboratórios, escutas, erros e acertos, que culminei no espetáculo Origem, em 1998, possibilitando que eu me arriscasse mais profundamente na área de pesquisa e criação, lançando-me, dentro de minhas características individuais e, conforme a proposta do método Teatro do Movimento, tendo a possibilidade de me tornar um fomentador, distribuidor e semeador dos frutos desse método.

Após participar de quase todas as criações da Companhia Alaya Dança, houve a necessidade de se criar o Núcleo Alaya, voltado para pesquisas, onde pudemos efetivamente experimentar nosso amadurecimento e intercambiar com outros artistas advindos de várias áreas, criando uma atmosfera homogênea, mesmo com pessoas totalmente distintas.

Uma das vertentes positivas do Núcleo foram as Mostras de Intérpretes-Criadores que, desde 1998, iniciado com o projeto intitulado Origem, num laboratório com o mesmo título, já lançado anteriormente no Departamento de Artes Cênicas da UnB por Lenora Lobo. Este processo inicial “foi tão rico que passou a incorporar o método do Teatro do Movimento, sendo proposto como parte da formação de todos os que por eles passam, no sentido de fazê-lo compreender como foram construídos seus corpos, movimentos e imaginário, e ainda, a importância de cada um no ato criativo e na conquista de um vocabulário pessoal . Tive o privilégio de participar todas as mostras lançadas pelo Núcleo – Origem (2000 e 2002), Corpo Poeta (2003), Corpo-Sonoro (2007) Metáforas Espaciais (2010).

Os mestres

No início da década de 1980, iniciei efetivamente meu trabalho, inicialmente como ator amador e profissionalmente a partir de 1987, com o curso de bacharelado em Artes Cênicas onde experimentei vários métodos e técnicas através de autores teatrais, entre eles Stanislavsky, Artaud, Brecht, Grotowski, Augusto Boal e outros. Cito esses mestres teatrais, pois foi através deles que senti a necessidade de pesquisar mais intensamente o binômio teatro e movimento corporal. Resumo um pouco de cada um.

Constantin Stanislavski

Ator e diretor russo, que está no centro de uma das principais revoluções teatrais do século 20. Identifiquei-me inicialmente bastante com Stanislavsky, pois trazia um teatro realista e seu principal conceito é o da Memória de Emoções. Neste sistema, o ator deve construir psicologicamente seu personagem, de forma minuciosa, mesmo que o texto forneça poucos dados. Deve buscar, com exercícios de imaginação, o passado e o futuro da personagem. Em meu teste prático no vestibular da faculdade, inconscientemente e sem nenhuma bagagem profissional, apenas intuitiva, trouxe essa memória de emoções, interpretando um texto que exigia toda uma carga dramática de muita emoção e construção de personagem.

Antonin Artaud

Expoente do teatro francês, esse poeta, ator, diretor e ensaísta provocou uma reviravolta no conceito de vários aspectos da cultura ocidental, criando o Teatro da Crueldade e trazendo o tema da incomunicabilidade, invertendo e subvertendo a ordem do fazer cênico. Tido clinicamente como um louco, Artaud fazia questão de deixar suas ideias incandescentes. “A estética da crueldade é isso: Um jato sangrento de imagens, tanto na mente do poeta, como na do espectador, pondo o sangue e a violência a serviço da poesia”, dizia. Faço hoje uma analogia ao fazer cênico que, através do olhar social, somos imbuídos dessa crueldade urbana e incomunicável. Então, tentei questionar: O que tenho a mostrar enquanto ator, intérprete: um fazer enclausurado na caixa preta ou remexer o espectador deixando-o sair do teatro com seus questionamentos? Lembro-me de uma peça teatral que atuei na faculdade e que posteriormente foi para o circuito comercial intitulada O Ovo, do autor e diretor teatral Hermes Leão, em que se questionava justamente isso: a incomunicabilidade, o absurdo, a crueldade. Saía profundamente exaurido no término de cada sessão, o que me fez questionar que teatro era esse que nos “esvaziava”; onde não havia uma mútua troca entre palco e plateia. Valeu a experiência, o aprendizado e o discernimento para saber futuramente o que queria buscar no fazer cênico.

Eugen Bertolt Friedrich Brecht

Dramaturgo alemão, que tentou romper abertamente com o método de Stanilasvky, que trazia um teatro realista, onde mantinha um olhar ator-espectador. Brecht escreveu que o “objetivo da nova arte deveria ser apenas pedagógico, tanto no conteúdo, quando na forma”. Segundo ele, o ator e o espectador deveriam se distanciar um do outro e cada um de si próprio. Com Brecht, surge a teoria do distanciamento, onde o espectador deve tirar da peça uma lição permanente e não se identificar sentimentalmente com ela, enquanto o ator deve ser capaz de sair de sua personagem e logo após comentar sua interpretação. Isso não significa dizer que Brecht não valorizava a emoção. (Escritos sobre Teatro, Bertold Brecht. Buenos Aires, Ediciones Nueva Vison. 3 vols. 1970,1973. 1975).

Augusto Pinto Boal

Foi diretor de teatro, dramaturgo e ensaísta brasileiro, uma das grandes figuras do teatro contemporâneo internacional. Fundador do Teatro do Oprimido, que alia o teatro à ação social. Suas técnicas e práticas difundiram-se pelo mundo, notadamente nas três ultimas décadas do século 20, sendo amplamente empregadas não só por aqueles que entendem o teatro como instrumento de emancipação política, mas também nas áreas de educação, saúde, sistema prisional, etc. Lembro-me do início de meus trabalhos teatrais na década de 1980, quando abordávamos justamente a questão política, o desejo por justiça social. Queríamos dar um grito de protesto frente às injustiças sociais, a desvalorização do ser humano, as segregações em geral.

Jersy Grotowski

Grande mestre polonês que, na década de 1960, modificou a maneira de pensar na atuação cênica. Disse que o teatro deveria recuperar sua “pobreza”, despindo-se do desnecessário. Segundo ele, o figurino, o cenário, a música, os efeitos de luz e até mesmo o texto dramático são acessórios dispensáveis. Mas não o ator. Sua meta era o “ator santo”, que se revela por inteiro, sendo capaz de expressar através do som e do movimento, os impulsos que estão no limite do sonho e da realidade.

Grotowski e Teatro do Movimento

Entre todos os mestres citados anteriormente, foi em Grotowski que percebi uma maior aproximação e afinidade com o Teatro do Movimento, principalmente quando é relacionado com os fundamentos do método criado por Lenora Lobo. Minha maior empatia e aproximação com Grotowski me fez questionar quando da construção de meu solo Marcas, marco inicial para o meu processo de criação individual – integrante do projeto Origem, da Cia Alaya Dança, e posteriormente na I Mostra de Intérpretes-Criadores – pude perceber conforme dizia Grotowski – que, na construção dos laboratórios eu trazia dezenas de elementos cênicos. Essa observação me levou ao questionamento de trabalhar cada vez mais com o simples, despindo-me de quase todos os elementos cênicos. Orientado pela diretora Lenora Lobo e colegas intérpretes, em especial a experiente intérprete-criadora e parceira Aida Cruz, comecei a trabalhar com o mínimo possível.

MEU CORPO-CARNE PEDE: ME DÁ DE COMER

“O Corpo-carne pede: Me dá de comer”. Essa frase proferida pelo saudoso pesquisador Maurício Gaspar, parceiro de Lenora no espetáculo Primata Terra, do qual tive o privilégio de participar, me remeteu muito aos meus anseios. Origem? Origem! Minha origem, a nossa origem, a sua origem.

Tudo começou em 1998 com o laboratório Origem, quando nos foi lançada a proposta de pesquisarmos nossas origens, tema incluído no Terceiro Vértice do Triângulo da Composição do Teatro do Movimento – O Imaginário Criativo, nos permitindo trabalhar de forma mais genuína uma qualidade de movimentos e ideias individuais e, posteriormente uma ideia coletiva, sendo que, num primeiro momento, foi proposto uma “tempestade cerebral”.

Origem, início, nascimento, mãe e pai, consciente e inconsciente, enfim, tudo isso pulsava, tremia na tentativa de consolidar a percepção corporal, a corporeidade, às vezes visceral e orgânica, às vezes não, muitas e muitas vezes mais visceral e orgânica. Estas são minhas características. Eu sentia tudo, eu sinto tudo! Meus cinco sentidos totalmente alertas.

Nos laboratórios propostos para a construção de meu solo Marcas , as primeiras impressões vieram através de minha sensação corporal, eu sentia tudo, minha pele, minha carne reverberava, pulsava, em e eu me sentia como um ermitão experimentando e vivenciando tudo. E como diria José Gil, “Temos que tornar um corpo intensivo de potência, pois ainda que aprisionado e silenciado, ele insiste no corpo dado exigindo outro olhar, outra escuta” . Marcas, deixar marcas, imprimir minha digital. O foco central de minha pesquisa à época seria “esvaziar” e ao mesmo tempo “encher” minha memória dessas origens, minha origem, como também das origens externas. Digo externa, pois tentei povoar minhas ideias e pensamentos através da pesquisa corporal. Além de me observar, minha pesquisa tentava transmutar além da minha origem, da minha memória. Eu queria também sentir e observar o outro, o externo, na tentativa de criar uma simbiose e fusão desses fatores: interno x interno. Até mesmo quando eu usava o espaço, o meu espaço corporal. Gil coloca ainda que “o bailarino evolui num espaço próprio, diferente do espaço objetivo .” E o espaço tornou-se elemento desencadeador para o meu olhar externo, para além de mim, mas ao mesmo tempo com toda a percepção aflorada, imbricado nele totalmente. Pele, carne e espaço criam e adquirem texturas adversas, e percebo que, “embora invisíveis, o espaço, o ar principalmente, confirmam essa afetação”.

Um desafio fazer essa fusão. Um grande e bom desafio! Então, através de minha árvore genealógica, deu-se início ao processo. Passei por vários vieses, dentre eles a cultura nordestina, de onde veio mais explicitamente meu interesse em descobrir que, por nascer e ser criado dentro de uma cidade como Brasília, heterogênea de pessoas, artistas de vários cantos país, pude fazer uma analogia do corpo heterogêneo. Carnes-memórias oriundos de vários lugares, meios, origens e memórias adversas. Vários corpos e vários territórios.

Percebo nessas diferenças a possibilidade de engendrar vários questionamentos, desde a busca por relações perfeitas, como a minha percepção corporal, talvez aprisionado em padrões remetendo-me a um sedentarismo corporal, burocrático e urbano. Trazendo como base as histórias da região nordestina, uma cultura vasta e rica, mesclando com várias vertentes artísticas, (músicas, lendas, folguedos, a espiritualidade – o sagrado x profano, etc.), tentando fazer uma ligação com meu percurso adquirido dentro da Cia, focando nos três vértices do Triângulo da Composição. (Corpo Cênico, Movimento Estruturado e Imaginário Criativo), conforme nos ensina o Teatro do Movimento.

Apesar de já trazer uma bagagem teatral em que eu havia trabalhado especificamente dentro de uma linha com mestres voltados para a palavra e outras técnicas cênicas de pensadores e criadores teatrais. Num primeiro momento, foi desafiador, tornando posteriormente um processo instigante em poder unir essa mescla de conhecimentos dentro de um método que, no meu ponto de vista, traz um respeito às qualidades e caminhos já adquiridos pelo intérprete, pelo criador, sem propor uma condição pré-estabelecida, pois os vértices do Triângulo permitem realizar essa organização.

Origem, um processo, que ao mesmo tempo foi rico, foi também desafiador, pois, na minha ânsia em querer trazer uma grande dose de elementos, houve momentos de dúvidas, questionamentos, o desapego… Aos poucos, fui burilando e descartando o desnecessário. Fui entender e perceber posteriormente que trabalhar com “o simples é difícil”. O escritor irlandês George Bernard Shaw, que nos legou uma infinidade de magníficos livros, quando já nonagenário, certa feita, desabafou: “A simplicidade é o que há de mais difícil no mundo: é o último resultado da experiência, a derradeira força do gênio”.

E nesses momentos de reflexão fui analisando em que esses elementos eram realmente necessários ou apenas serviam de muletas, camuflando assim o intérprete, o criador, o dançarino – o meu brincante, pois eu poderia não ter a percepção de não dar ênfase e a real prioridade na questão da corporeidade e do meu imaginário. Neste ínterim foram-me colocados os questionamentos: “Onde está o intérprete? O criador? Onde está o corpo cênico, o imaginário, etc.?”. Sinceramente, estas questões tornaram-se cruciais e, num primeiro momento, deu-me um stop corporal. Foram necessárias pausas para análises e reflexões. Cheguei à conclusão posteriormente que o excesso de elementos cênicos foram, consequentemente, sobressaltados além da minha corporeidade: um erro, pensei. Retornar, repensar e reavaliar. Foi então, que, após essas análises, veio a necessidade de descartar e desapegar vários elementos e pensamentos, me remetendo ao mestre Grotowski e seu método o genial quando ele diz que “o teatro deveria recuperar sua pobreza, despindo-se do desnecessário”. Como eu disse, o simples é difícil. Resolvi então, deixar-me despir completamente, desapeguei de tudo, e reiniciei para que meu processo fluísse de forma espontânea. Toda a construção do trabalho, cena, corpo, ação, foi sendo experimentada passo a passo, na tentativa de desencadear movimentos cada vez mais espontâneos e autênticos. E como minha característica seria ir pelo visceral, dei então vazão a isso.

Levando em consideração ao tema Origem, tentei colocar em laboratório todas as etapas de minha vida, adaptando a uma corporeidade, trazendo o lado lúdico de criança, a descoberta e as adversidades da adolescência, a peleja e agruras e aprendizados repassados pelos pais, como também os festejos da cultura nordestina. Tudo isso, inicialmente, sem basicamente nenhum elemento cênico externo, o corpo pelo corpo, a carne pela carne, a atenção, os sentidos aflorados, a magia interna de sensação orgástica corporal para a construção da cena. Os improvisos, as sensações do riso solto e/ou a tensão provocada por catarses corporais. E eu estava presente e apenas sentia e deixava reverberar por cada ponto do corpo, incorporando-me totalmente, deixando-me levar pelo bem vindo desconhecido para que, através desse turbilhão de sensações e percepções conscientes, desse-me maior clareza e consistência para a criatividade da construção do produto final.

Por isso, concordo com Grotowsky quando diz que “a criatividade consiste descobrir o desconhecido”, trazendo-me maior consolidação, onde, naturalmente, fui adentrando verdadeiramente dentro dos vértices, fundindo-se também com minhas experiências adquiridas advindas da área teatral, pois como coloca o Teatro do Movimento, “podemos começar necessariamente a nos afastar das técnicas codificadas em dança, centrando seu trabalho na consciência corporal, no treinamento do corpo do ator e bailarino, que sozinho deve ir descobrindo suas necessidades, elegendo as formas de treinamento mais pessoais. Pois a experiência rende bons frutos! Lenora Lobo começa a orientar a pesquisa que privilegia as fronteiras e cruzamentos entre teatro e dança, tornando mais claras essas diferenças e ancorando reconhecimento corporal necessariamente ligado à história pessoal de cada indivíduo.

O Teatro do Movimento lembra deixar aos dançarinos uma grande tarefa: a liberdade de escolhas, não lhes retirando suas técnicas já estabelecidas, a sua função, dentro da árdua tarefa de treinamento corporal, mais apropriado dentro de suas potencialidades e individualidades. E foi justamente nesse foco que busquei minha construção nos laboratórios Origem para a consolidação do espetáculo Marcas, trabalhando basicamente e inicialmente minha memória corporal. Foi o pontapé introdutório dentro do Triângulo da Composição, onde pude explicitar melhor o poder dessa transformação cênica. Um poder também de transformação interna, e que como Lenora Lobo diz: “às vezes o papel do orientador torna-se o de um “bruxo” . Então, tive que dar as respostas a isso, deixando-me dar vazão a esse turbilhão em várias vertentes: corporais, emocionais, racionais. Como também de sensações e percepções, tentando fazer uma conexão com minhas polaridades, e jogos antagônicos, emocional x racional, corporal x mental, etc., usando minha potencialidade e limites corporais. Essa fase do processo foi um dos momentos mais instigantes, pois meu incorporar, in-corporar, fluía além do que a palavra propunha. Aurélio Buarque de Holanda dá sinônimo à palavra incorporar em “agrupar, aliar, juntar, adicionar”.

Na minha percepção, tento em resignificar meu in-corpo-rar ao que a própria palavra remete: “dar corpo a”, tentando usar todas as minhas possibilidades cênicas. Percebi que, entrando no campo da memória corporal fui aflorando todo o cabedal que antes estava e pulsava inconsciente. Sentidos alertas. Musculatura alerta. Vísceras Alertas. Deixei fluir, dei minha carne. in-cor-po-rei. Quando Lenora Lobo associa o Triângulo da Composição com vários Triângulos presentes na ancestralidade: Amor/sabedoria/poder, pai/filho/espírito santo, como também outros vértices de corpo/mente/espírito, energia/matéria/ação, dentre outros, percebi que ela fez um grande “achado” em seu Triângulo da Composição (Corpo Cênico, Movimento Estruturado e Imaginário Criativo). Tais elementos se fundem basicamente com os outros tantos Triângulos que o universo nos coloca. Sua proposta sugere que, no Teatro do Movimento, o Triângulo da Composição possa ficar mais próximo ao principio da energia/matéria/ação, o que vim a entender posteriormente.

O Corpo Cênico – um deleite, onde trabalhei o que tem de mais expressivo no ser humano, o mais espontâneo, o mais lúdico, experimentar, improvisar, criar, recriar: a desarmonia, a dicotomia, os bloqueios e mesmo os desbloqueios, o grande achado de perceber onde começa e onde termina. O processo de finalização foi desafiador, pois houve momentos de devaneios, emoções e experimentos, advindos tanto da minha experiência enquanto ator-dançarino quanto das premissas apontado pelo Teatro do Movimento.

Com a metodologia adotada pelo Teatro do Movimento foi possível sintetizar as escolhas, pois já se fundamentava em princípios e vivências que proporcionavam dar ao ator e ao dançarino a consciência dos caminhos a serem traçados, que tanto poderiam ser dados com conhecimentos sobre a arte da dança, suas estruturas, etc., como também em suas criações individuais, ou produção, difusão, oriundas a cada carreira. Mas a minha já estava começando a ser traçada.

No segundo vértice do Triângulo – Movimento Estruturado – dentro dos laboratórios, na minha percepção, senti que foram introduzidas concomitantemente ao Triângulo as premissas para o Teatro Movimento, pois os conjuntos de conhecimentos básicos a respeito de cada tema abordado eram introduzidos automaticamente.

A partir daí, adentramos profundamente em cada uma das premissas:

Gravidade, ou seja, sua relação com o peso, a pressão, concomitante com os pontos de apoio, pois estamos a todo o momento lidando com as forças da gravidade, numa troca com a terra incessante em sua eterna necessidade de locomoção e movimento. A gravidade traz também suas polaridades: a entrega, o relaxamento, o esvaziar e encher-se, inspirar e expirar.

Energia, um termo que pode haver várias interpretações, mas no caso do Teatro do Movimento fala do fluxo energético, a presença de algo que transcende a materialidade, o que se chama de energia vital. Nos laboratórios e aprendizados, temos que estar por inteiro, atento, alerta, perceptivo, enfim, energético. E isso eu percebo quando estou no palco e sinto uma energia, que também chamo de força, me preencher por completo, na certeza de transmutar o palco e chegar até o espectador. Sabemos que existem vários estudos como a medicina chinesa, a bioenergética e suas couraças musculares, o alinhamento de chacras vitais e toda uma linha de pesquisa tida como ‘esotérica’, mas não adentraremos mais a fundo, pois nosso foco será o de tratar e energia corporal de modo que não fique bloqueada, estagnando os movimentos, pois assim poderá prejudicar o bom funcionamento do fazer cênico. Com essa premissa energética nos foram propostos várias formas de desfazer as tensões musculares para fluir os movimentos mais fortes, enérgicos.

Respiração – Esta foi minha grande dificuldade, pois desde os laboratórios eu tinha que dar um maior foco em meu fluxo de respiração, pois meu desafio era conseguir trabalhar corretamente o fluxo contínuo da caixa torácica, observar o caminho que o oxigênio percorre no corpo, até mesmo silencia a mente, após uma tempestade corporal, uma técnica usada no Teatro do Movimento. Logo após essa catarse de movimento, uma parada e simplesmente a observação da respiração, o fluxo do oxigênio, sentindo que a respiração adentra cada parte do corpo, para, em seguida, começar seus movimentos mais conscientes. Assim, o movimento corporal pode fluir conscientemente, naturalmente, fazendo uma combinação entre respiração e movimento.

Pontos de apoio, força e compensação, que implicam saber procurar os pontos corporais de apoio, tanto com a terra, quanto em você, até mesmo retesar a musculatura e dar leveza, trabalhando as polaridades, leve/forte e pesado, dar peso nas partes do corpo.

E um fator importante: Projeção. Um item bem interessante, pois é necessário saber quando dosar sua projeção para que o espectador o perceba sem cair em estereótipos cênicos. Lembro-me de uma apresentação que fiz com meu solo Marcas num auditório imenso durante o Festival de Dança em Uberlândia, com aproximadamente mil pessoas presentes. Graças a este quesito das premissas consegui atingir tal objetivo. Pois se partimos do princípio que o ator precisa ser percebido numa distância de espaço razoável, que separa o palco da plateia compreenderemos a importância da projeção para o artista cênico, muito mais que para atores de cinema e vídeo.

Finalmente, Os três acentos rítmicos – início, meio e final do movimento – Percebo que o tempo, a música, o caminhar, a pulsação, podem ser complementos dentro dos três acentos rítmicos, pois, conforme o Teatro do Movimento, existem esses acentos naturais que são caracterizados pelo acento de força realizado de pontuar, principalmente na ritmização das danças populares, isto no início. O acento no final pode desprender maior esforço ou energia nos instantes finais, revelando-se mais impactante. Uma das grandes dificuldades que ainda temos é fazer esse acento final, deixando que às vezes o acento do meio fique maior que do final. Pensamos que é fácil, mas acertar esses acentos rítmicos é tarefa árdua para o orientador/coreógrafo.

Apesar de ter feito uma mescla de cruzamentos dentro do Triângulo da Composição com as Premissas Básicas, entendo que podemos trabalhar simultaneamente todos os vértices dentro de todo o Triângulo da Composição.

O Terceiro Vértice do Triângulo – O Imaginário Criativo e meu pontapé inicial para a construção do solo Marcas

O Imaginário Criativo foi pra mim um grande achado, pois quando fiz referência ao mestre Grotowski, compreendi a magia da criação. O Teatro do Movimento faz uma ótima analogia do Imaginário Criativo com um estado imaterial onde habitam as imagens e ideias. Neste vértice, está a energia espiritual que pode fluir com a energia mental. Foi nesse vértice que percebi o poder da elaboração da composição, que é o centro do Triângulo. É na composição elaborada que pode ser manifestado o corpo cênico.

O Teatro do Movimento propõe justamente isto: incentivar a individualidade e a independência, criando ou não uma arte: dança ou teatro e suas linguagens. Exatamente porque nesses casos, os movimentos codificados, as técnicas formatadas podem aprisionar e limitar a capacidade do intérprete dentro de uma determinada técnica. E comigo ocorreu exatamente isso na criação e na composição de meu solo dentro do projeto Origem. Tive o privilégio de romper com as impregnações trazidas em minha memória corporal e mesmo codificações advindas do percurso teatral. Em alguns momentos foram até importantes tentar discerni-los e respeitá-los para que a elaboração mais genuína prevalecesse.

A clausura necessária

Ainda, citando a formatação do solo Marcas, desde o momento da criação até o fechamento da composição foi demasiadamente exaustivo, pois, enquanto criador, senti necessidade de me isolar, ficar sozinho no estúdio porque havia no meu imaginário já material suficiente pelo fato de eu ter passado pelas fases do laboratório, tanto no aprofundamento das premissas básicas, quando nas pesquisas elaboradas focadas nos vértices do Triângulo. E agora era o momento de resumir todo o processo e fechar a estrutura/composição, levando em consideração principalmente as questões de trabalhar com mais precisão, fechamento e priorização de elementos. Nesse processo foi consolidado o solo que fez parte integrante da I Mostra de Intérpretes-Criadores da Cia Alaya, como também a participação em vários festivais nacionais e internacionais, nos rendendo o prêmio enquanto melhor intérprete-criador eleito pela APCA de 1999, nos revelando a verdadeira eficácia do Método Teatro do Movimento.

A experiência

Durante minha experiência com o Teatro do Movimento ao longo de quase 20 anos e também durante o bacharelado em Artes Cênicas venho tentando trabalhar e focar na minha corporeidade. E apesar de intercambiar minha experiência no coletivo, isso pra mim é único, individual e singular. John Dewey coloca isso claramente quando fala sobre a experiência, pois para ele “a experiência singular tem uma unidade que lhe confere seu nome – aquela refeição, aquela tempestade, aquele rompimento de amizade”. Explicita mais ainda, quando diz que “a experiência dessa unidade é constituída por uma qualidade ímpar que perpassa a experiência inteira, a despeito da variação das partes que a compõem”.

E para mim é isso: por mais que teorizamos, experimentamos ou trocamos, vivenciar todo esse período é sentir que houve uma construção completa, que transmuta tudo numa experiência una, e como diz Dewey: “vivenciar a experiência, é como respirar, é um ritmo de absorções e expulsões”. E sentir todo o fluxo da respiração continua é minha experiência de vida, que vem automática numa consequência corpórea. Percebo que, para a construção de uma composição é preciso haver planos e estratégias de movimentos. Steve Paxton questiona: “o que é um plano de imanência da dança?” E responde: “É um plano de movimento. Mas não de qualquer movimento. A marcha compõe também um plano de movimento em que certos movimentos de órgãos coexistem e se combinam de maneira específica, segundo uma lógica própria. Podemos até participar nela como outros movimentos não habituais (andar virando para a esquerda e direita, por exemplo) Tudo isso, no entanto, não de forma imanente.

Comparando basicamente ao trabalho do ator, alguns movimentos inconscientes coexistem e se combinam. Percebo que quando o diretor teatral solicita que o ator se movimente de maneira não habitual, tudo está intrinsecamente ligado a uma codificação com as técnicas estabelecidas pelo diretor, ou mesmo fazendo uma fusão de elementos. E para que haja essa fusão ou mesmo saturação do corpo pelo sentido, como diz Paxton, “é necessário que uma osmose completa se priorize entre a consciência e o corpo”. Completa quando diz que essa osmose só existe por surtos na consciência vigil comum, seja por uma dor ou um esforço muscular intenso.

Normalmente só temos uma consciência exterior do nosso corpo (visto como corpo/objeto). Tentamos sempre fazer uma espécie de consciência implícita do nosso corpo como de um objeto particular (como diz Leibniz, ele pertence-nos ‘temo-lo’; ou antes, um corpo de carne sensível como diz Husserl). Steve Paxton escreve: “A consciência pode viajar no interior do corpo. E isso é um fato análogo ao de dirigir o olhar no mundo exterior. Como também há uma consciência análoga à visão periférica que é a consciência do corpo inteiro, mantendo os olhos abertos”.

Lenora Lobo coloca que a dança contemporânea é a dança dos nossos tempos, mas sem a liberação dos corpos, o fim das imposições do fazer artístico, etc. Por outro lado, fazemos exames mais de perto podemos até dizer que todo processo de invenção de uma nova dança até mais complexa do que podemos examinar. E onde está esse paralelo do trabalho e do ator teatral com fusão do movimente basicamente estruturado? Os nossos grandes mestres teatrais carregam em si a técnica por eles codificada ou pré-codificada e quando traço um paralelo desses mestres, conecto com as premissas do Teatro do Movimento, fazendo uma clara percepção do trabalho desencadeador para o trabalho ao binômio ATOR X DANÇARINO. Sinto-me contemplado em fazer mais essa fusão nas vertentes que venho tentando consolidar para a minha cena.